O cancelamento da melhoria de reforma pelo TCU
Desde o fim de 2019, inúmeros militares reformados pelas Forças Armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica) vêm sendo surpreendidos com a cessação de suas melhorias de reforma e a consequente redução de seus proventos.
Militares que foram reformados por incapacidade para o serviço militar e sofreram o agravamento de suas lesões ou doenças, tornando-se inválidos para toda e qualquer atividade laboral, foram beneficiados com a melhoria de reforma, ocasião em que passaram a receber seus proventos calculadas com base no soldo correspondente ao grau hierarquicamente imediato ao que possuíam na ativa, nos termos do artigo 110, § 1º, da Lei nº 6.880/80, que dispõe acerca do Estatuto dos Militares.
Cumpre repisar, que o § 1º, do artigo 110, da Lei nº 6.880/80, estabelece que, o militar da ativa ou da reserva remunerada, considerado inválido, isto é, permanentemente incapaz para qualquer trabalho, será reformado com a remuneração correspondente ao grau hierárquico imediato ao que possuir ou que possuía na ativa, respectivamente.
Diante disso, pacificou-se o entendimento de que o militar reformado por incapacidade apenas para o serviço militar, em decorrência de acidente de serviço, doença com relação de causa e efeito com o serviço ativo ou uma das doenças previstas no inciso V, do artigo 108, da Lei nº 6.880/80, tem direito à melhoria de reforma caso sua debilidade se agrave e resulte em invalidez para qualquer trabalho.
Isso porque, apesar de o artigo 110 referir-se apenas aos militares da ativa e da reserva remunerada, há de ser levado em consideração que, apesar de superveniente, a invalidez é decorrente da mesma lesão ou doença que motivou a reforma do militar quando ele ainda perfazia a condição de ativo ou reservista remunerado.
Assim, ao longo dos anos, os Tribunais Regionais Federais, o Tribunal de Contas da União e o Superior Tribunal de Justiça firmaram o entendimento de que o artigo 110 pode ser aplicado também ao militar já reformado, bastando que a invalidez seja decorrente da mesma lesão ou doença que motivou a sua reforma.
O entendimento adotado pelos tribunais vinha sendo aplicado de forma ambígua pela administração militar, de modo que muitos militares reformados conseguiam a melhoria de reforma no âmbito administrativo, enquanto outros tinham que se socorrer do poder judiciário.
Em sessão ordinária realizada no dia 18 de setembro de 2019, os Ministros do Tribunal de Contas da União levaram à julgamento o processo nº 002.418/2019-3, a fim de apreciar a legalidade dos atos de reformas de quatro militares das Forças Armadas, sendo que um foi declarado ilegal.
No caso reprovado pelo TCU, o militar havia sido transferido para a reserva remunerada no ano de 1990, contando com 37 (trinta e sete) anos de serviço ativo, ocasião em que passou a receber seus proventos calculados com base no soldo correspondente ao grau hierarquicamente imediato ao que possuía na ativa, em virtude do que dispunha o inciso II, do artigo 50, da Lei nº 6.880/80 (dispositivo revogado).
No ano de 2001, ao atingir a idade limite de permanência na reserva remunerada, foi reformado ex officio.
Já reformado, o militar foi acometido por moléstia incapacitante, motivo pelo qual postulou a melhoria de sua reforma com base no artigo 110, o que acarretaria a alteração do fundamento de sua reforma por idade para incapacidade, hipótese que o Tribunal de Contas da União e outros Tribunais já haviam rechaçado, por ausência de fundamentação legal.
Com a alteração, o militar teria suas remunerações calculadas com base em dois postos acima daquele que ocupava na ativa, o que também carece de fundamentação legal.
Diante disso, o TCU julgou ilegal a pretensa melhoria, pois, como dito, a alteração do fundamento da reforma e o acréscimo de dois postos no cálculo dos proventos não possuem previsão legal.
Observa-se que o debate promovido naquele processo não tinha como objeto a melhoria de reforma para militares reformados por incapacidade para o serviço militar.
Todavia, de forma totalmente arbitrária, o Relator do caso lançou em sua decisão comentários contrários a concessão da vantagem prevista no artigo 110 a militares já reformados por incapacidade para o serviço militar que, posteriormente, ficaram inválidos para toda e qualquer atividade laboral.
No entendimento do ilustre Ministro, o disposto no artigo 110, da Lei nº 6.880/80, aplica-se somente aos militares da ativa ou da reserva remunerada, pois, na sua concepção, a norma visa compensar o militar que teve sua carreira abruptamente interrompida em virtude do ofício ou de doença grave prevista no inciso V, do artigo 108, do mesmo diploma legal.
Quanto ao militar da reserva remunerada, o Ministro alega que ele também pode ter a carreira interrompida abruptamente, visto que ainda está sujeito à prestação do serviço militar em caso de convocação ou mobilização.
Nessa senda, o Julgador entende que não há interrupção de carreira quando o militar já é reformado, motivo pelo qual declarou ilegítima a melhoria de reforma para os militares reformados por incapacidade.
Contudo, não observou o Relator que o militar reformado por incapacidade para o serviço ativo, posteriormente acometido por invalidez, também teve a sua carreira interrompida repentinamente, de modo que a única diferença é o período que levou para se tornar inválido.
Salienta-se que, a conduta do Ministro Relator confrontou o entendimento pacificado pelo próprio Tribunal de Contas da União em sessão de julgamento realizada em 11/08/2010, quando a corte proferiu o acórdão nº 1987/2010, declarando a legitimidade da concessão da remuneração correspondente ao grau hierárquico imediato ao militar acometido por invalidez superveniente a reforma, desde que a invalidez fosse decorrente da mesma lesão ou doença que lhe tornou incapaz para o serviço militar.
Além disso, a decisão proferida violou gravemente o princípio do contraditório e da ampla defesa, pois, como mencionado alhures, a aplicação do artigo 110 aos militares já reformados por incapacidade para o serviço militar sequer era objeto da demanda em que foi prolatado o acórdão, ou seja, nenhum militar em tal condição foi ouvido.
A decisão em debate afetou e seguirá afetando milhares de militares com a drástica redução de seus proventos sem que nenhum deles tenha a oportunidade de se manifestar a respeito.
Portanto, em uma breve análise, verifica-se a existência de pelo menos duas ilegalidades, sendo uma de procedimento, na medida em que não foi garantido o contraditório e a ampla defesa aos militares afetados, e outra na interpretação equivocada do artigo 110, da Lei nº 6.880/80.
Nos termos do artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, as ilegalidades apontadas garantem a possibilidade de reexame da matéria perante o Poder Judiciário, pois, conforme preconiza o referido dispositivo, a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Outro ponto a ser destacado é a aplicação equivocada da referida decisão pela Administração Militar.
Restou decidido pelo pleno do Tribunal de Contas da União que, o acórdão proferido teria eficácia somente sobre os atos de concessão de melhoria de reforma analisados a partir da prolação daquela decisão, ou seja, 18 de setembro de 2019.
Entretanto, vários foram os militares que já haviam adquirido o direito à remuneração correspondente ao grau hierárquico imediato e, após a decisão, foram surpreendidos com cessação do benefício e a redução de seus proventos, um grave erro das Autoridades Militares.
Neste caso, o ato de cancelamento pode ser analisado e anulado perante o Poder Judiciário.
Conclusivamente, por qualquer vértice que se analise a conjuntura, são várias as irregularidades enfrentadas pelos militares das Forças Armadas, o que não se pode admitir.
Ióron Mugart, Advogado, pós-graduando em Direito Militar, Supervisor da carteira de Direito Militar do escritório Lima, Pegolo & Brito Advocacia, Autor de teses e artigos jurídicos.