De Marx a Shakespeare, amor e ódio ao dinheiro, o mais cobiçado dos metais
O Direito à Preguiça e o dinheiro
Paul Lafargue, genro de Karl Marx, escreveu o "Direito à Preguiça", panfleto de sucesso tanto pela retórica vibrante quanto pelo cálculo "mui amigo" do autor, de que a jornada de trabalho deveria ser de três horas por semana e todos só deveriam trabalhar seis meses por ano. Que beleza! Ele é provocativo para o público a que se destinava o panfleto: "Trabalhem, trabalhem, proletários, para aumentar a riqueza social e suas misérias individuais, trabalhem, trabalhem para que, ficando mais pobre, tenham mais razões para trabalhar e tornarem-se miseráveis. Essa é a lei inexorável da produção capitalista". Lafargue escreveu esse texto para denunciar as mazelas causadas pelo dinheiro.
O sogro de Lafargue, no entanto, não considerava o dinheiro a raiz de todo o mal, apesar de o denominar de a "rameira da humanidade". Marx via o dinheiro como a manifestação das contradições do capitalismo, e não como causa das contradições. Por isso, nunca lhe passou pela cabeça abolir o dinheiro. Mas os seguidores de Pierre-Joseph Proudhon, o francês que lançou as bases do anarquismo, o "avô dos black bloc", doutrina política que prega a abolição do Estado e defende a construção de uma sociedade onde a relação entre indivíduos seja igualitária, propunham com todas as letras a abolição do dinheiro. Contemporâneos de Marx, Lafargue e Proudhon, o russo Leon Tolstoi, que, longe de ser marxista, era antes um anarquista cristão, também não via o dinheiro com simpatia: "O dinheiro é uma nova forma de escravidão", escreveu o autor do formidável Guerra e Paz.
Shakespeare já falava em abolir o dinheiro
Mas, muito antes dos anarquistas, Shakespeare antecipou, no final do século XVI, a perspectiva utópica. "Quando eu for rei e serei, não haverá de existir dinheiro; todos irão comer e beber por minha conta", diz o personagem Jack Cade, que é mais lembrado
por ter concordado, na peça Henrique VI, com a célebre reivindicação popular de que a primeira coisa a se fazer na sua revolução seria matar todos os advogados.
Essa antiga ideia de querer consertar o mundo pela abolição do dinheiro não leva em conta que as disputas, por ele provocadas, continuarão a existir em sua ausência, causadas pelo que o suceder: seja o ouro, a prata, uma mera concha marinha ou uma semente de cacau (todos foram usados como dinheiro e ocasionaram disputas sanguinolentas).
Klein: rei do varejo e da simplicidade
Samuel Klein, fundador e dono da Casas Bahia, era um homem simples. Do alto de sua majestade de "Rei do Varejo" e dos mais de R$ 13 bilhões, valor de mercado do império criado em 1952 de dentro de uma charrete, respondia a quem perguntava o que fazer para tal façanha: "vender a quem precisa".
Talvez o fato de ter nascido no vilarejo polonês de Zaklikof, em 1923; renascido aos 19 anos, quando não foi mandado para a morte no campo de extermínio de Treblinka, para onde foram mãe e cinco irmãos mais novos que nunca mais viu, e ter sido designado juntamente com o pai para o campo de concentração de Maidanek, na Polônia; sobrevivido a tudo isso e reinado no varejo brasileiro da segunda metade do século XX explique um pouco a célebre frase de Klein, cunhada em 2001, quando já ocupava o trono: "Pela minha experiência, posso dizer que quanto mais pobre uma pessoa, mais honesta ela é".
Das “Bahia”, com muita honra
Daquela charrete, além do império Casas Bahia, surgiu também o embrião do famoso carnê de prestações. Na década de 50, Samuel Klein já oferecia a possibilidade dos "fregueses" sem dinheiro terem crédito em sua loja. O carnê chegou a responder por mais da metade das vendas das Casas Bahia, cujo faturamento beirava os R$ 13 bi, com suas 500 lojas, quando se uniu ao Pão de Açúcar, em 2009. Estes "fregueses", que não atrasavam uma prestação sequer, eram os mesmos nordestinos, que foram trabalhar na indústria automobilística do ABC, no caso São Caetano do Sul, e que foram injustamente achincalhados na recente e deplorável campanha eleitoral. "A riqueza do pobre é o nome",
costumava dizer. Samuel Klein trabalhou diariamente em sua companhia até 2012. Simples assim.
A distopia brasileira
Em uma obscura cidade hipotética, gangues de adolescentes dedicam as noites a roubar, violentar e matar. O jovem líder é capturado pela polícia. Submetido a uma agressiva terapia psíquica para que a violência o perturbe, simula haver-se curado e sai livre, mas continua selvagem. O valor distópico dessa narrativa está embasado no livre-arbítrio: é melhor ser malvado por decisão própria que bom por lavagem cerebral.
Em outra narrativa, depois de uma guerra, vivendo em um estado fascista que controla a população mediante a repressão e redes de câmeras por todos os lados, surge um homem mascarado que empreende uma série de atentados, para levar a cabo sua vingança particular contra o regime. Neste caso, o valor distópico está na luta do indivíduo frente ao estado totalitário que o sufoca. O herói da trama é um anarquista sem piedade e frio na consecução de seus atos violentos.
As duas narrativas são sobejamente conhecidas. A primeira está no filme "Laranja Mecânica" e a segunda no "V de Vingança".
A questão posta é se existe uma massa de jovens brasileiros, talvez sul-mato-grossenses, conduzidos por um ideário distópico? Vimos algo semelhante nos filmes das manifestações de um ano atrás?
A distopia é o revés da utopia. Um lugar ruim para se viver, devido a uma tirania ou com o meio ambiente degradado. Estamos construindo uma parcela de nossos jovens para serem conduzidos a seus extremos mais negativos? Ou estão surgindo tendências e fenômenos no presente que podem nos conduzir a um mundo brutal e destruído?
Talvez seja os choques dos extremos. O salto conquistado de bem estar social se confrontando com muitos outros substratos da sociedade. Os próximos anos responderão. Mas é difícil duvidar, os valores distópicos estão germinando no Brasil e no Mato Grosso do Sul.