O dia em que um jogador de Campo Grande “derrubou” a pauta da Globo
Dribles perfeitos e bom nos cruzamentos de linha de fundo, comedido nas palavras e discreto fora de campo. Assim era o atacante Kleber Gouveia, que nos anos de 1980 saiu do Cruzeiro de Belo Horizonte para jogar no Operário de Campo Grande. Entre os jogadores, tinha os apelidos de “Galã de Novela” e “Intelectual”.
Não era um supercraque, como seu companheiro de time, o meia Arthurzinho. Era um bom jogador, além de altamente profissional, coisa rara ainda hoje no futebol brasileiro. Mas foi pelo seu altíssimo nível intelectual que ele entrou para a história do nosso futebol, não só de Mato Grosso do Sul, mas do Brasil. Kleber Gouveia, que voltou a morar em Belo Horizonte desde que encerrou a carreira, é uma dessas pessoas com Quociente de Inteligência muito acima da média.
Era início dos anos de 1980, eu dava os primeiros passos no jornalismo esportivo e tinha como missão a cobertura diária do Operário de Campo Grande pelo Correio do Estado e Rádio Cultura. E como sou do tipo que sempre procura estar ao lado de quem sabe mais, o Kleber era um dos meus grandes parceiros. Era com quem eu mudava de assunto, saia do cotidiano do futebol e viajava em temas da filosofia, psicologia e sociologia.
Em 1984, quando fui trabalhar em São Paulo, perdemos o contato. Dois anos depois, no dia 29 de setembro de 1986, um domingo à tarde, reencontrei o Kleber no Estádio do Pacaembu. Ele já no Comercial de Campo Grande e eu na Rádio Record, em um jogo do time campo-grandense pelo Campeonato Brasileiro diante do Palmeiras. Entrou na metade da segunda etapa no lugar de Arizinho e pouco pode fazer para mudar o panorama da partida, e foi fora de campo a sua melhor jogada. Naquele dia a repórter da TV Globo, Kitty Balieiro, estava lá com a missão de desenvolver uma pauta para uma matéria especial que mostrasse o desconhecimento do jogador de futebol sobre o regulamento do Brasileirão. Seria uma crítica ao desinteresse dos jogadores, sobretudo dos times do interior do Brasil, em relação às regras do seu próprio trabalho.
Quando o jogo terminou com vitória do Palmeiras por 4 a 2, a Kitty foi diretamente no Kleber. Talvez por ser loiro ou pela sua cara de galã, tudo a ver com o padrão global tão em alta naquela época, mas para o objetivo da matéria a escolha aleatória do entrevistado foi a pior possível. O Kleber simplesmente mostrou total conhecimento do regulamento do campeonato, talvez mais do que a maioria dos dirigentes. Detalhou seus artigos e parágrafos e ainda fez críticas ao comando da CBF pelo que chamou de “desrespeito ao atleta”.
Acompanhei toda a entrevista e não esqueço da cara de frustração da Kitty Balieiro. “Da onde é esse cara? Deve ser um ET”, comentou ela assim que o Kleber desceu para o vestiário do Pacaembu. E, evidente, não teve matéria. Na linguagem das redações, o Kleber derrubou a pauta.