Para preservar história e sabor de 1958, clientes criam campanha contra rodovia
Da fazenda surgiu um restaurante. De lar, virou comércio. À porteira batiam viajantes, em tempos em que a distância de Dourados a Campo Grande levava até mais que 8h de percurso. Era fome, era sede, era cansaço. Assim as portas se abriram, da parada mais tradicional do Estado. Aberta desde 1958, a "Água Rica" agora corre contra o tempo. O projeto de duplicação da BR-163 vai chegar até a casa de madeira erguida pelo seu Franklin e que o genro, Quinzinho, prometeu aos clientes que não derrubaria.
"Foi fundada pelo meu avô, os viajantes começavam a pedir abrigo para comer, parar. E ele decidiu abrir o restaurante", conta a neta, Fabiane Queiroz Tomaz, de 44 anos. Do seu Franklin, a "Água Rica" passou para o genro, Joaquim Tomaz Filho, conhecido como Quinzinho, marido da filha, dona Maria Inez. O pão de queijo foi junto, carro-chefe, era a receita do avô mineiro e que de longe é servido com café para mais de 300 pessoas por dia.
São 33 hectares de área total da fazenda, localizada no km 341, da BR-163, pouquinho depois do Distrito de Anhanduí. A casa de madeira é ainda do projeto original, da década de 50. A família até chegou, alguns anos atrás, a cogitar uma reforma, estava com projeto em mãos, mas que não saiu do papel a pedido dos clientes.
"Todo mundo falou para não fazer e permanecer do jeitinho que está", conta Fabiane. Quinzinho, o pai dela, morreu num acidente em 2013 e desde então a parada está nas mãos dela e da mãe.
A conversa da duplicação chegou primeiro como "boato" entre os clientes. Não foi nada formal, alega a família. Houve uma audicência pública na Assembleia Legislativa sobre a estrada e depois os donos foram até a CCR, empresa que administra as estradas federais no Estado. A proposta já é considerada como certa. "Tirar árvores e passar a estrada no estacionamento. Quando vimos o projeto eles disseram que não tinha como mudar, porque do outro lado teriam que gastar um pouco mais para reembolsar o proprietário", conta Fabiane.
Decepção é pouco para elas e os clientes. Se a duplicação da via fosse estendida para o outro lado, casa, árvore e a mina que dá o nome de "Água Rica" ao lugar, se manteriam firmes e fortes, assim como a clientela. O comunicado pela CCR é que a rodovia vai chegar a 1,5m da entrada da casa. Ou seja, "engole" o estacionamento e as árvores. "Eles disseram que não vão nos obrigar a sair, mas a rodovia vai acabar com o ponto, não vai poder mais estacionar, vamos ter que mudar o restaurante e vai acabar com a nossa água", descreve a filha.
A saída da família é a da tentar coletar documentos e informações que possam embasar um possível tombamento do imóvel como patrimônio histórico e cultural. "É tanta gente que passa e passou por aqui: Almir Sater, Michel Teló, Luan Santana e a família dele... Meu pai uma vez contou ao Almir que ia mudar a casa, ele disse que se mudasse, não pararia mais ali", recorda Fabiane.
Na semana que passou, funcionários da concessionária foram até a parada com caminhões e uma ordem de serviço para cortar duas árvores. Sem serem notificadas, avisadas, ou qualquer que fosse o documento por escrito, filha e mãe não souberam o que fazer. "Eles só disseram que estavam autorizados, eu assustei, se nem nos avisaram das árvores, de repente ele chegam aqui e a gente fica sem saber o que fazer".
A cena foi acompanhada pelo advogado Sérgio Maidana, cliente assíduo e histórico. Dos 50 anos de vida, pelo menos trinta deles foram passados ali. "Eles cortaram uma árvore e deixaram na entrada do restaurante, chamei a dona e mostrei, aí que me contaram que estão querendo passar a estrada ali na frente", diz Sérgio.
Em revolta, protesto e como desabafo, ele publicou um artigo nas redes sociais e criou uma petição na internet, pela conservação do restaurante Água Rica. "Não pode, aqui já é um patrimônio cultural do Estado. Só eu passo lá há mais de 30 anos. Queremos sensibilizar a classe política, para ver se alguém encampa a ideia", resume o advogado.
Para a filha, neta e hoje comerciante à frente do restaurante, faltam palavras para expressar o que é a Água Rica. "É tudo o que eu conheço, eu cresci lá. É onde meu pai foi presente. Nossa vida foi praticamente ali. As pessoas que passavam lá quando eu era criança, hoje vão com os filhos".
Por enquanto não há um prazo para que as obras comecem, pelo menos é o que CCR MSVia informou por meio da assessoria de imprensa. Em nota, a concessionária explica que os projetos relativos à duplicação estão sendo discutidos com a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) e o IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), por conta da definição da Licença Ambiental.
O restante da duplicação, segundo eles, deve ser realizado em 48 meses de prazo, a contar da data de emissão da licença, que ainda não foi expedida.