“Alphaville dos pobres”, nome é único luxo na dureza do Alfavela
Lugar de miséria e esperança, Alfavela é nome bem-humorado dado por moradores a uma comunidade no Portal Caiobá
A tragicomédia é um subgênero teatral híbrido, que mistura tragédia e comédia, drama, farsa, etc... Nos enredos desse tipo, a seriedade da desgraça humana é quebrada pelo humor situacional, nos colocando perto do paradoxo da vida, onde nos equilibramos entre sorrisos e lágrimas, quando não, tudo isso junto.
Na tragédia da miséria, o humor surge como filtro das dores da pobreza. Aqui em Campo Grande, lá no finzinho do bairro Portal Caiobá 1, está a “Alfavela”, nome dado pelos moradores à comunidade com cerca de 50 famílias. O nome é uma adaptação do Alphaville, uma das marcas de condomínio de luxo mais famosas do Brasil, inclusive em Campo Grande.
Localizada na Rua Poética, uma via estreita e longa, os barracos ficam todos amontoados numa extensa fila indiana que não dá para ver o fim de uma ponta a outra.
A Rua Poética tem versos tortos, cheia de sulcos, crateras, pedras, lixo. Quando chove vira um córrego enlameado, que leva angústia e desespero aos moradores, assim como poemas. E no dia seguinte, as madeiras mofadas, o chão sujo e uma única vontade: ir embora, e nem precisa ser para o Alphaville.
Esse é o maior desejo do catador de reciclagem Evaldo Pereira da Silva, que ostenta sua paixão pelo Flamengo num boné. Morador da comunidade há oito anos, Evaldo sonha com o dia em que terá sua casa própria, longe do sofrimento diário, até hoje difícil de se acostumar. “Isso não é vida, a gente fica porque é nossa única alternativa.
A cratera em frente a casa de Evaldo é tão grande que ele fez uma pequena ponte para sair dela. Dentro do mesmo contexto, o morador reclama da truculência policial.
Segundo ele, no dia anterior ao que a reportagem visitava a comunidade, policiais o humilharam com xingamentos por estar com dois aparelhos de televisão desmontados no quintal.
“Me chamaram de nóia, putinha de cadeia, sendo que eu achei essas televisões na rua, e nunca tive passagem”.
Uma pequena roda de moradores está reunida bem onde a favela começa, ou termina, enfim, em uma das pontas da rua. Paula Correia da Silva, de 28 anos, mora com o esposo e três filhos na Alfavela. Ela é uma das líderes da comunidade.
Ostentando seu cabelo rosa choque, Paula fala com preocupação dos dias de chuva. “Quando o céu fecha, já fico desesperada”, ela ainda nos mostra um vídeo de como fica sua casa em dias de chuva, com água corrente, como de um rio.
O serralheiro Ederson Varela da Silva, de 40 anos, teve o carro levado pela enxurrada. “Isso aqui não é vida, nós estamos de improviso, porque não pagamos energia e imposto, essas coisas, mas a verdade mesmo é que queremos é um lugar sossegado pra viver”.
A área de lazer de um condomínio como o Alphaville tem no mínimo menos que quadras esportivas, piscinas, parquinhos para as crianças. Na Alfavela, por enquanto, o único lazer das crianças e a bolinha de gude, ou bolita, que está sendo praticado pelos primos Henrique e Giovani enquanto conversamos com os adultos.
O campo de futebol ao fundo, em um lote privado, está praticamente abandonado. Só se sabe que é um, por conta das traves ainda em pé.
Na outra ponta da rua está a casa do criador do nome, seu Leonildo Miguel de Farias, 58 anos, ou apenas “Farias”. O alagoano é um dos moradores mais antigos e que ostentava até pouco tempo em sua casa uma placa com o nome “Alfavela”, de onde baseamos a grafia usada na reportagem.
Farias mora com esposa e dois filhos. Acometido por sequelas graves de uma fratura no tornozelo e por um inchaço na barriga, causado pelo problema crônico na vesícula, o “padrinho” da Afavela nos questiona se nossa reportagem é para ajudar ou para “lascar” com a comunidade. Ao que ele mesmo responde: “Lascar mais como, né?”, ri.
Para seu Farias a vida na Alfavela é tranquila, principalmente pela solidariedade interna que se consolidou ao longo dos anos, mas admite que, apesar do humor, a felicidade mora mais perto do Alphaville do que da Alfavela.
“Rapaz eu nunca foi lá, nem imagino, mas também sei que eles (moradores do Alphaville) nem imaginam como é aqui. Sorte a deles”.
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