Aventura sobre os trilhos: só quem viajou sabe a emoção de estar em um trem
Vídeo de 1988 mostra o trajeto do Trem do Pantanal na linha Bauru a Campo Grande
Só quem viveu na época do Trem do Pantanal em Mato Grosso do Sul sabe a sensação que era entrar na Maria Fumaça. Um vídeo feito por Nilton Gallo, em 1988, mostra o Trem do Pantanal vindo de Bauru e passando por Campo Grande. Na gravação dá para ver a paisagem verde das estradas, poucos carros passando e a emoção que era estar dentro de uma locomotiva.
Os vagões, as poltronas, os quartos reservados, o cheiro e até o barulho era emocionante. As janelas serviam de distração para os passageiros durante as horas de viagens, lembra o chefe de cozinha Ricardo Merebe. “Tinha de tudo na beira da estrada, pescador, animais silvestres, chácaras. Era uma aventura”, frisa.
Ricardo é filho de ex-ferroviário e fez a linha Campo Grande/Bauru várias vezes na infância. “Minha família veio de lá, e nas férias eu voltava para visitar [os parentes]. Eram 24 horas de viagem, o trem percorria aproximadamente 800 quilômetros. Tinha 11 anos na época, ia com um amigo”, relata.
O trem encerrou as operações com os passageiros em 1996. Hoje, aos 41 anos, Ricardo lembra como eram as melhores viagens, e conta que a aventura começava antes de embarcar. “Naquele tempo, em toda parada, ficavam vários garotos que jogavam pedra no trem. Eles só esperavam a gente passar nas curvas. Então, antes de subir eu catava um monte de minério de ferro e aguardava preparado para atacar. Na saída de Campo Grande, trocávamos pedradas com outras crianças”, conta Ricardo rindo ao lembrar das peripécias que aprontava na infância.
Após a “brincadeira”, ele perambulava pelos vagões, sentava nas poltronas e até acompanhava seu pai no trabalho. “Ficava ao lado dele. Andávamos por toda parte, íamos na cozinha e ele fazia várias amizades. Os garçons vendiam pratos feitos e lembro até hoje deles passando na madrugada oferecendo chocolate quente, bolacha, pão com mortadela, café e refrigerante. Existia glamour. No serviço de cabine e batia na porta”.
Na época, não tinha muita tecnologia e o trem era o paraíso de todas as pessoas. Até mesmo o som da Maria Fumaça sobre os trilhos era gostoso de ouvir. “O ritmo começa forte e diminuía. Dava para dormir”, recorda Ricardo.
A viagem era longa, mas o trem fazia algumas paradas no caminho. Quem descia tinha pouco tempo para esticar as pernas e comprar o que precisava. O alarme tocava umas três vezes anunciando que ia seguir o trajeto e era preciso ser rápido. “Eu e um amigo descemos para comprar doces, quando vi o trem já estava partindo. Saímos correndo e pulamos numa das entradas dos vagões, pois não havia como o pará-lo”, diz.
Outra memória ainda presente em Ricardo, é a imagem de seu pai no trem. “Lembro dele sentado na janela, fumando um cigarro”. A saudade aperta o peito ao lembrar da época de ouro. Para o chef de cozinha, o mesmo trajeto não é tão emocionante quando feito em outro transporte. “Viajar no ônibus não existe privacidade, de carro é até mais cômodo, mas ir de trem é algo muito diferente”, destaca.
Quem também fez o trajeto foi José Melquiades Velasques. Na época, estava com 21 anos e atuava como Policial Federal Ferroviário. “Era muito divertido. O trem saia de Bauru às 15h 30, mas não era todos os dias. Várias pessoas conversam entre si durante o trajeto. Era uma troca de experiência, conhecia músicas, culturas e comidas diferentes. Outro mundo”. “Dava para ver os carros passando, pois os trilhos ficavam a beira da rodovia. No caminho conseguíamos ver o Rio Paraná”.
Ele é coordenador de Assistência Social da Afadepi (Associação dos Ferroviários, Aposentados, Pensionistas, Demitidos e Idosos), e tem 61 anos. Contudo, relata que sua história com a ferrovia começou em 1981, quando veio de Corumbá para trabalhar em Campo Grande. "Fiz um curso e passei".
José lembra que na época, os passageiros eram divididos em classes diferentes. “Tinha três vagões de segunda classe e cinco para a primeira. Contávamos também com três cabines duplas e três individuais com camas, para as pessoas que queriam descansar”.
“O passageiro poderia circular entre a primeira e a segunda classe. Mas, se ele tivesse passagem de segunda classe, senta-se na poltrona da primeira e fosse pego, teria que pagar multa. Se não tivesse dinheiro, ficaria detido e chegando na estação, tinha que deixar um objeto de valor”, recorda José.
Para ele, a época é marcada pela saudade. “Sinto falta. Vejo o que antes era cuidado com carinho, tudo destruído. Não tiveram interesse em preservar a ferrovia. Tenho colegas que trabalharam comigo e choram ao lembrar das histórias. A gente se consola. Aqui [antiga estação ferroviária de Campo Grande] é um lugar de nostalgia”, destaca.
José lembra que muitas pessoas vinham de Bauru e traziam suas mercadorias para vender na Capital. “A estação vivia cheia às 6h da manhã. Em média de 700 passageiros chegando e saindo. Faziam fila para entrar na reversa de viagens, principalmente nos feriados. Alguns dormiam na espera”.
Na antiga estação restou apenas um vagão de 20 metros. José abriu a porta da locomotiva e mostrou como é por dentro. O que antes era cheio de poltronas, hoje está vazio. Com 2,5 metros de largura, o vagão conta dois banheiros pequenos, um com sanitário e outro para banho. É ali onde está a memória de uma época que marcou a história de Mato Grosso do Sul.
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