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Comportamento

Aventura sobre os trilhos: só quem viajou sabe a emoção de estar em um trem

Vídeo de 1988 mostra o trajeto do Trem do Pantanal na linha Bauru a Campo Grande

Alana Portela | 11/10/2019 08:20
José Melquiades Velasques dentro do vagão que está na antiga estação ferroviária (Foto: Henrique Kawaminami)
José Melquiades Velasques dentro do vagão que está na antiga estação ferroviária (Foto: Henrique Kawaminami)

Só quem viveu na época do Trem do Pantanal em Mato Grosso do Sul sabe a sensação que era entrar na Maria Fumaça. Um vídeo feito por Nilton Gallo, em 1988, mostra o Trem do Pantanal vindo de Bauru e passando por Campo Grande. Na gravação dá para ver a paisagem verde das estradas, poucos carros passando e a emoção que era estar dentro de uma locomotiva.

Os vagões, as poltronas, os quartos reservados, o cheiro e até o barulho era emocionante. As janelas serviam de distração para os passageiros durante as horas de viagens, lembra o chefe de cozinha Ricardo Merebe. “Tinha de tudo na beira da estrada, pescador, animais silvestres, chácaras. Era uma aventura”, frisa.

Ricardo é filho de ex-ferroviário e fez a linha Campo Grande/Bauru várias vezes na infância. “Minha família veio de lá, e nas férias eu voltava para visitar [os parentes]. Eram 24 horas de viagem, o trem percorria aproximadamente 800 quilômetros. Tinha 11 anos na época, ia com um amigo”, relata.

O trem encerrou as operações com os passageiros em 1996. Hoje, aos 41 anos, Ricardo lembra como eram as melhores viagens, e conta que a aventura começava antes de embarcar. “Naquele tempo, em toda parada, ficavam vários garotos que jogavam pedra no trem. Eles só esperavam a gente passar nas curvas. Então, antes de subir eu catava um monte de minério de ferro e aguardava preparado para atacar. Na saída de Campo Grande, trocávamos pedradas com outras crianças”, conta Ricardo rindo ao lembrar das peripécias que aprontava na infância.

Ricardo Merebe ri ao lembrar de quando viajava no trem (Foto: Henrique Kawaminami)
Ricardo Merebe ri ao lembrar de quando viajava no trem (Foto: Henrique Kawaminami)
Ricardo segurando um trenzinho que guarda em sua casa (Foto: Henrique Kawaminami)
Ricardo segurando um trenzinho que guarda em sua casa (Foto: Henrique Kawaminami)

Após a “brincadeira”, ele perambulava pelos vagões, sentava nas poltronas e até acompanhava seu pai no trabalho. “Ficava ao lado dele. Andávamos por toda parte, íamos na cozinha e ele fazia várias amizades. Os garçons vendiam pratos feitos e lembro até hoje deles passando na madrugada oferecendo chocolate quente, bolacha, pão com mortadela, café e refrigerante. Existia glamour. No serviço de cabine e batia na porta”.

Na época, não tinha muita tecnologia e o trem era o paraíso de todas as pessoas. Até mesmo o som da Maria Fumaça sobre os trilhos era gostoso de ouvir. “O ritmo começa forte e diminuía. Dava para dormir”, recorda Ricardo.

A viagem era longa, mas o trem fazia algumas paradas no caminho. Quem descia tinha pouco tempo para esticar as pernas e comprar o que precisava. O alarme tocava umas três vezes anunciando que ia seguir o trajeto e era preciso ser rápido. “Eu e um amigo descemos para comprar doces, quando vi o trem já estava partindo. Saímos correndo e pulamos numa das entradas dos vagões, pois não havia como o pará-lo”, diz.

Outra memória ainda presente em Ricardo, é a imagem de seu pai no trem. “Lembro dele sentado na janela, fumando um cigarro”. A saudade aperta o peito ao lembrar da época de ouro. Para o chef de cozinha, o mesmo trajeto não é tão emocionante quando feito em outro transporte.  “Viajar no ônibus não existe privacidade, de carro é até mais cômodo, mas ir de trem é algo muito diferente”, destaca.

Maquete simulando como era a estação ferroviária com os trilhos e trens (Foto: Henrique Kawaminami)
Maquete simulando como era a estação ferroviária com os trilhos e trens (Foto: Henrique Kawaminami)

Quem também fez o trajeto foi José Melquiades Velasques. Na época, estava com 21 anos e atuava como Policial Federal Ferroviário. “Era muito divertido. O trem saia de Bauru às 15h 30, mas não era todos os dias. Várias pessoas conversam entre si durante o trajeto. Era uma troca de experiência, conhecia músicas, culturas e comidas diferentes. Outro mundo”. “Dava para ver os carros passando, pois os trilhos ficavam a beira da rodovia. No caminho conseguíamos ver o Rio Paraná”.

Ele é coordenador de Assistência Social da Afadepi (Associação dos Ferroviários, Aposentados, Pensionistas, Demitidos e Idosos), e tem 61 anos. Contudo, relata que sua história com a ferrovia começou em 1981, quando veio de Corumbá para trabalhar em Campo Grande. "Fiz um curso e passei".

José lembra que na época, os passageiros eram divididos em classes diferentes. “Tinha três vagões de segunda classe e cinco para a primeira. Contávamos também com três cabines duplas e três individuais com camas, para as pessoas que queriam descansar”.

“O passageiro poderia circular entre a primeira e a segunda classe. Mas, se ele tivesse passagem de segunda classe, senta-se na poltrona da primeira e fosse pego, teria que pagar multa. Se não tivesse dinheiro, ficaria detido e chegando na estação, tinha que deixar um objeto de valor”, recorda José.

José Melquiades Velasques vestindo seu antigo colete de policial federal ferroviário (Foto: Henrique Kawaminami)
José Melquiades Velasques vestindo seu antigo colete de policial federal ferroviário (Foto: Henrique Kawaminami)
Segurando uma caixa de luz que servia para sinalizar o trem (Foto: Henrique Kawaminami)
Segurando uma caixa de luz que servia para sinalizar o trem (Foto: Henrique Kawaminami)
O vagão azul é o único que está na antiga estação (Foto: Henrique Kawaminami)
O vagão azul é o único que está na antiga estação (Foto: Henrique Kawaminami)

Para ele, a época é marcada pela saudade. “Sinto falta. Vejo o que antes era cuidado com carinho, tudo destruído. Não tiveram interesse em preservar a ferrovia. Tenho colegas que trabalharam comigo e choram ao lembrar das histórias. A gente se consola. Aqui [antiga estação ferroviária de Campo Grande] é um lugar de nostalgia”, destaca.

José lembra que muitas pessoas vinham de Bauru e traziam suas mercadorias para vender na Capital. “A estação vivia cheia às 6h da manhã. Em média de 700 passageiros chegando e saindo. Faziam fila para entrar na reversa de viagens, principalmente nos feriados. Alguns dormiam na espera”.

Na antiga estação restou apenas um vagão de 20 metros. José abriu a porta da locomotiva e mostrou como é por dentro. O que antes era cheio de poltronas, hoje está vazio. Com 2,5 metros de largura, o vagão conta dois banheiros pequenos, um com sanitário e outro para banho. É ali onde está a memória de uma época que marcou a história de Mato Grosso do Sul.

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José abriu a porta único vagão que sobrou na antiga estação (Foto: Henrique Kawaminami)
José abriu a porta único vagão que sobrou na antiga estação (Foto: Henrique Kawaminami)
No vagão tem uma alavanca para puxar em caso de emergência (Foto: Henrique Kawaminami)
No vagão tem uma alavanca para puxar em caso de emergência (Foto: Henrique Kawaminami)
O banheiro é pequeno e tem uma pia de metal (Foto: Henrique Kawaminami)
O banheiro é pequeno e tem uma pia de metal (Foto: Henrique Kawaminami)
José mostrando os objetos antigos policiais ferroviários que estão na antiga estação (Foto: Henrique Kawaminami)
José mostrando os objetos antigos policiais ferroviários que estão na antiga estação (Foto: Henrique Kawaminami)

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