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Comportamento

Da “maldição à liberdade”, Anne fala como é ser uma transexual autista

"Tinha uma coisa dentro de mim que não se encaixava direito", diz Anne, a trans que também vivencia outro estigma – o do autismo

Raul Delvizio | 16/12/2020 06:33
Annebelle é a trans autista de 28 anos (Foto: Arquivo Pessoal)
Annebelle é a trans autista de 28 anos (Foto: Arquivo Pessoal)

Como em um quebra-cabeça, Annebelle Arcoíris Leblanc, de 28 anos, finalmente encontrou e conseguiu encaixar a última peça que lhe faltava. Por trás do Aspenger diagnosticado – uma síndrome do espectro do autismo – ela também assumiu sua transexualidade. Hoje, mesmo vivendo sobre as sombras e dificuldades do duplo estigma de ser trans autista em uma sociedade tradicionalmente "sã e hetero", se sente liberta e cada vez mais completa. Mas cada dia é um dia, um processo que irá durar sua vida inteira.

No Voz da Experiência, ela contou sobre relacionamentos, abusos, descobertas e aceitação. Olhar no espelho é uma luta constante porque na sua cabeça ainda vê aspectos masculinos que fisicamente gostaria de não mais ter. Porém, ao acordar todos os dias, procura "vestir" a melhor versão que puder ser.

"Era uma coisa dentro de mim que não se encaixava direito" (Foto: Silas Lima)
"Era uma coisa dentro de mim que não se encaixava direito" (Foto: Silas Lima)

"Dos meus 16 aos 24 anos, passei pelo processo da aceitação de ser autista. Fui diagnosticada com a síndrome de Asperger, que está dentro do Transtorno do Espectro do Autismo. Foi libertador e ao mesmo tempo uma maldição. Durante esses quase 10 anos, passei por cinco fases: a de 'fui amaldiçoado', depois 'sou doente', pra daí 'tenho uma doença', em seguida 'sou portadora do autismo', até chegar em 'sou autista' de atualmente.

Sempre me senti estranha, esquisita. Nunca tive uma boa sociabilidade. Tentava me enturmar e falhava miseravelmente. Os amigos que tenho conto nos dedos. Era uma coisa dentro de mim que não se encaixava direito.

Só foi depois de me aceitar como autista, de ser Asperger, que a última peça do quebra-cabeça – minha transexualidade – conseguiu ser colocada. Uma amiga minha dos tempos de escola me disse recentemente: 'eu sempre soube que você era diferente. Quando você finalmente se revelou publicamente, vejo agora que o ser mulher era o que mais lhe faltava'. O autismo até então 'engolia' meu lado trans.

"O autismo até então 'engolia' meu lado trans" (Foto: Silas Lima)
"O autismo até então 'engolia' meu lado trans" (Foto: Silas Lima)

Tudo era muito difícil dentro de mim, guardava segredos e tinha medo de falar sobre. No ano que fiz 24 foi quando assumi publicamente o Aspenger. Fui atrás de um laudo médico por questões de saúde. As pessoas pensam que isso é uma facilidade, mas não é. Imagina para arrumar um emprego? É um inferno. Agora ser autista e trans também? É 10 vezes mais difícil. Por isso eu me viro sozinha.

É importante dizer aqui: não existe cura para quem não é doente.

Não sou uma doença ambulante. Bipolaridade, dislexia, depressão, TDAH [Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade], todas elas fazem parte de transtornos relacionados à saúde.

Voltando. Desde meus 21 anos, já tinha fortes indicativos da minha transexualidade, mas eu até estava num relacionamento super abusivo com uma mulher. Tive que entrar na terapia por causa disso. Não só o fato de ser autista e também meu negacionismo de ser trans, mas passei por uma fase de hipermasculinidade tóxica que considero que se originou ali, naquele terror psicológico.

"Desde meus 21 anos, já tinha fortes indicativos da minha transexualidade" (Foto: Silas Lima)
"Desde meus 21 anos, já tinha fortes indicativos da minha transexualidade" (Foto: Silas Lima)

Isso durou dois anos. Quando a gente está num relacionamento abusivo, a coisa vai piorando e não nos damos nem conta do que estamos passando. Tudo que eu tinha de atividades, que eu realmente gostava, eu comecei a não fazer mais por causa do crivo dela. Tinha amigos que me falavam pra eu pensar duas vezes antes de fazer algo. No final das contas, foi ela quem terminou. Eu me senti 'quebrado' bem no meio, como um pedaço de graveto, piorando cada vez mais e sem nem saber o porquê.

Só com a terapia que passei por uma reconstrução de identidade, na verdade de me reencontrar no meio daquele vazio que eu sentia. As pessoas sempre me consideravam muito feminina, que eu não tinha um comportamento/atitude 'de homem'. Meus últimos relacionamentos foram todos com mulheres, e eu já ouvi até quem disse que eu era a 'fêmea' da relação. Piadinha machista e de pura misoginia. Naquela época, eu ainda não vestia ou me 'apresentava' como mulher.

"Sempre fui um híbrido e ao mesmo tempo nada dos dois" (Foto: Silas Lima)
"Sempre fui um híbrido e ao mesmo tempo nada dos dois" (Foto: Silas Lima)

Porém, nem tudo foi ruim. Meu último relacionamento, por exemplo, foi maravilhoso. Com ela, pude me assumir de fato trans. Ela quem mais me incentivava. Antes, eu mesmo mentia: 'sou homem, apesar dessa tal coisa'. Foi primeiro uma calcinha, depois um vestido, daí veio a maquiagem e por aí vai. Cada vez mais me sentia livre e completa. com a ajuda dela, me realizei trans não-binária, ou seja, não me identificava com nenhum padrão social de homem/mulher. Sempre fui um híbrido e ao mesmo tempo nada dos dois. Houve todo um cuidado comigo, todo um carinho que recebia dela, não somente de coisas materiais, mas também de afeto, amor e sexo. Tínhamos um relacionamento absolutamente normal. Nos amávamos completamente. Aliás, ainda a amo.

Teve uma vez que ela me emprestou um maiô com bojo e, junto da filha dela, tomamos todos um banho de piscina. 'O que essa criança vai pensar de mim?' – olha como o preconceito estava enraizado dentro da minha cabeça. Mas quando eu pus o maiô, nossa, fui da água pro vinho.

"A disforia de gênero é como se fosse o cérebro apertando um botão de ejetar" (Foto: Silas Lima)
"A disforia de gênero é como se fosse o cérebro apertando um botão de ejetar" (Foto: Silas Lima)

Há dois meses venho fazendo terapia hormonal, uma coisa que não posso nem quero parar – é para a vida toda. É difícil me olhar no espelho, até para escovar os dentes. Quando me maquio, fica um pouco mais fácil porque não me sinto tão masculina, principalmente o rosto. Por mais que eu nunca tenha tido problemas com o meu falo, é o saco escrotal que me incomoda. E a voz. Disforia de gênero, de ter aversão às características do sexo do nascimento, é uma coisa muito forte.

Afeta completamente minha vida, porque é o cérebro apertando um botão de ejetar.

E eu me incomodo com os olhares. Na rua, tenho mais medo disso do que da covid-19 pra ser bem sincera. De ser violentada, morta mesmo. Perder minha vida só por querer andar por aí. Ainda faço terapia, ainda tomo medicamento para ansiedade, ainda tenho meus fantasmas. Sempre vou ter que tratar alguma coisa.

"Minha essência continua a mesma" (Foto: Silas Lima)
"Minha essência continua a mesma" (Foto: Silas Lima)

Minha família está ainda passando pelo tempo dela de me aceitar. É um processo, afinal eles viveram 26 anos com o 'Zezinho' e de 2 anos pra cá agora é só com a Anne. Não sou a mesma pessoa porque todo mundo muda. A cada 7-8 anos, todas as células do nosso corpo se renovam. Será que eu sou a mesma pessoa ou a cada ciclo eu me torno alguém novo, diferente? Vale a pena ser a mesma pessoa? Não é melhor se aperfeiçoar? Buscar cada vez o melhor pra si?

Minha essência continua a mesma: sou autista, sou a transexual não-binária – mais para lésbica do que bissexual –, sou adepta ao poliamor, uma pessoa pró neurodivergência e acredito que as pessoas às vezes são capazes de mudar. No final das contas, quero apenas ser a minha melhor versão todos os dias".

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Além de dar aulas de inglês e alemão, Anne é produra musical e sound designer (Foto: Arquivo Pessoal)
Além de dar aulas de inglês e alemão, Anne é produra musical e sound designer (Foto: Arquivo Pessoal)
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