Fogo levou memória e “xiru” de 500 anos, que abençoava casa de reza
Em Dourados, incêndio acabou com templo que era símbolo da resistência cultural na aldeia, o último de MS
Ao redor da fumaça, índios guarani-kaiowá batiam levemente os pés no chão, balançando o corpo com os maracás, enquanto entoavam uma reza lamuriosa. A cena ocorreu horas depois de a última casa de reza da reserva indígena de Dourados, a 233 km de Campo Grande, ser totalmente destruída. É o fim do templo que representava a cultura indígena e abrigava 500 anos de história, segundo diz a comunidade, o último originalmente feito pelos guarani, ainda em pé em Mato Grosso do Sul.
No lugar, uma das perdas irreparáveis é de um xiru, estrutura feita com varas em formato de cruz, passada por gerações entre as famílias. É um objeto considerado sagrado, que traz presentes divinos ou, se descuidado, provoca pragas e doenças. Como as casas de reza, são o pouco das tradições originais que ainda resistiam na reserva hoje dominada pelas igrejas evangélicas.
O incêndio aconteceu na aldeia Jaguapiru, que fica a seis quilômetros do município, depois de uma noite bastante fria. O fogo que surgiu pela manhã ensolarada queimou totalmente a estrutura de madeira coberta por capim sapé. Do espaço sagrado ficaram apenas restos de madeira, totalmente queimados. Entre os elementos ritualísticos e objetos sagrados, um xiru centenário. “Nós sentimos muito por causa desse xiru, nativo dos nossos avós, bisavós, feitos pelos antigos, todo de madeira. Foi a maior perda além da nossa casa”, descreveu Arlindo Agenor da Silva, de 51 anos, nascido e criado na aldeia, e cunhado do cacique Getúlio Juca.
Segundo os indígenas, o fogo se espalhou após um homem, não identificado, provocar o incêndio. “Meu marido viu quando um homem colocou fogo, mas correu para o milharal. Na hora ele pensou nas crianças que estavam dentro da casa de reza”, conta a guarani-kaiowá Alda Silva, de 73 anos, esposa do cacique.
Nesta segunda-feira (8) foi difícil conversar com seu Getúlio, o cacique, por telefone. Bastante entristecido, ele dedicou boa parte do tempo a denúncia e às rezas ao lado de sua comunidade. A família reforça a suspeita de que o fogo foi criminoso. “Aqui criticam muito, falam que a gente é rabudo, querem terminar com a nossa cultura. Tem gente dentro da aldeia que mora e não gosta da casa. Alguém quis botar fogo”, comenta Alda.
O espaço sagrado era chamado de Gwyra Nheengatu Amba, ou "Casa do pássaro de boas palavras". Era a última construção kaiowá para esta finalidade que resistia nesta terra indígena. Recentemente, foi realizado um projeto arquitetônico para reformá-la, mas não deu tempo.
Ali, quase todos os dias, comunidade e visitantes eram recebidos com um ritual de boas-vindas e cantos guarani. Índios com seus rostos pintados com urucum faziam seus rituais e tinham a estrutura como principal lugar para transmissão de conhecimentos da cultura indígena.
O local também era referência cultural da comunidade e já recebeu eventos como o Encontro Nacional de Estudantes Indígenas (ENEI), o Kunhangue Jeroky Guasu, Aty Guasu, além de receber diariamente crianças para serem batizadas, benzidas, fazerem tratamentos médicos tradicionais e orientação espiritual.
Para dona Alda, que há décadas está dentro da casa e batalha pela sua cultura, o fogo trouxe um prejuízo histórico para os indígenas. Com a perda de objetos de culto, como xiru, yvyrai e mbaraka, onde os anciãos rezam, cantam e dançam, a comunidade pode ser prejudicada na colheita, o clima, alimentação e saúde. “O sentimento é de muita tristeza. Eu não sei como a gente vai fazer, porque a gente lutou tanto para manter essa casa e queimaram. Ali a gente fazia tudo que era bom”.
Representantes e amigos agora vão organizar uma vaquinha para reconstruir o espaço sagrados e devolvê-lo a comunidade, como forma de manter a preservação da memória coletiva e fortalecimento da resistência cultural.
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