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Comportamento

Gustavo desligou o celular por 1 ano, e sobreviveu do jeito mais difícil

Como abrir mão do celular por tanto tempo? Gustavo conta a experiência em um mundo tão virtual, onde ninguém se encontra.

Thailla Torres | 27/04/2020 06:23
Gustavo ficou 1 ano sem ligar o celular e precisou vencer até a exclusão. (Foto: Marina Cangussu)
Gustavo ficou 1 ano sem ligar o celular e precisou vencer até a exclusão. (Foto: Marina Cangussu)

Gustavo Maia é jornalista, fotógrafo e acadêmico de Artes Cênicas. Em 2019 ele conseguiu o que parece inimaginável nos dias de hoje: ficar um ano sem mexer no celular. Depois de largar o aparelho nos fundos do guarda-roupas, ele precisou sobreviver em um mundo que ninguém escreve e-mail, ninguém telefona, ninguém se encontra. Tudo isso numa cidade distante de Campo Grande e sem nenhum amigo virtual. No Voz da Experiência de hoje ele conta como sobreviveu e conseguiu se reconectar com as pessoas, sem o bendito aparelhinho na mão.

Gustavo abriu mão de todos esses aplicativos.
Gustavo abriu mão de todos esses aplicativos.

"Em tempos de isolamento social, em que as relações só podem ser virtuais e tudo se faz pelo celular ou pelo computador, sem sair de casa, eu me lembro de quando isso era uma opção e não uma obrigação, questão de vida ou morte. Bauman deve estar rindo nesse momento nos vendo surtar por uma quarentena parcial que dura pouco mais de um mês.

As conexões virtuais sempre me soaram muito falsas, sintéticas, bem distantes do que produz um abraço de verdade, um aperto de mão com olhos nos olhos ou um beijo dado com entrega. É quase como comparar uma caneca de leite puro de vaca com uma caneca de leite de caixinha. A diferença é absurda, sabemos disso, mas nos habituamos a beber a segunda opção. É mais cômoda e a sensação de que aquilo é natural, afinal de contas todo mundo bebe, nos faz pensar que escolhemos o melhor, o mais moderno. Mas eu não vim aqui pra falar de leite ou de quarentena. Vim contar pra vocês o que me aconteceu em 2019 - ano em que fiquei sem usar celular. E sim, eu sobrevivi pra contar essa história.

Passar horas de cabeça baixa futucando a tela do celular com os polegares enquanto o apoia sobre o mindinho com o auxílio dos demais dedos, era uma coisa que lá no fundo sempre me incomodou. E isso incomodava não só a mim, que ignorava tudo o que se passava ao meu redor, mas também a quem estava ao meu redor, sendo ignorado. Redes sociais como Twitter, Whatsapp e Instagram tinham minha total atenção por horas a fio ao longo do dia e, como se não bastasse, da noite também. Eu queria ser o primeiro a saber de tudo o que acontecia no mundo. E apenas saber não era o bastante, era preciso reagir, compartilhar, provocar também no outro uma reação e um novo compartilhamento. Afinal de contas, como nossas vidas poderiam seguir normalmente depois de saber que um ônibus com 16 crianças foi atingido por uma mina terrestre numa estrada em um vilarejo remoto do Paquistão? Ou que o chefe do Departamento de Defesa dos Estados Unidos escreveu um tweet alfinetando o príncipe da Arábia Saudita? Ou ainda que jovens em Hong Kong criaram uma hashtag pra enfrentar o governo chinês? Estar “conectado” a essas situações me fazia sentir como se eu pudesse, ou devesse, fazer algo a respeito, me indignar também, me emocionar também, lutar também em defesa de quem quer que fosse. E fazer com que mais pessoas soubessem o que estava acontecendo, e que elas também se indignassem, se emocionassem e lutassem comigo. Enquanto isso, sentado no sofá, de cabeça baixa, futucando o celular, a minha vida passava bem aqui, debaixo no meu nariz, e eu estava ocupado (distraído?) demais para perceber. Era como se minha vida fosse estar diante de uma TV assistindo às pessoas viverem. Era beber leite de caixinha repetindo pra mim mesmo que aquilo era natural, afinal de contas todo mundo fazia igual.

E eu sei que você também sente a mesma coisa. Você sabe que uma curtida no Instagram não é igual a um abraço. Que um like no Facebook não é igual a um sorriso. Mas a vida vai passando e na correria do dia a dia cada vez mais essas coisas se confundem. Quando o crush manda uma DM nos sentimos acariciados, até soltamos um risinho bobo olhando pra tela do celular. Um RT do melhor amigo é um afago, nos sentimos apoiados. E quando nosso ídolo visualiza nosso story? É o auge! E vamos nos contentando com essas pequenas doses digitais de “afeto”.

E como abrir mão de tudo isso? A vontade de desinstalar os aplicativos e desligar o celular era grande, mas além de entretenimento, as redes sociais também são importantes ferramentas de comunicação e todas as nossas relações de trabalho, da universidade, da família, de amigos e de todo o mais são resolvidas instantaneamente por um áudio no “whats” ou algo do tipo. E quando a gente se dá conta já está preso nessa rede como uma mosca se debatendo numa teia de aranha. Eu tentava me lembrar de como era minha vida antes de 2013, sem whatsapp. De como ela era antes de 2015, sem instagram. Como eu era antes de 2010, sem facebook e sem twitter. Antes de 2008, sem celular e sem internet. E eu não conseguia me lembrar. Mas eu queria me lembrar e queria voltar a viver como eu vivia. Ou pelo menos tentar, porque não seria nada fácil. Ninguém escreve e-mail. Ninguém telefona. Ninguém se encontra.

E em 2019 o Universo me deu a chance que eu precisava: me mudei para outro estado, onde eu ainda não tinha contatos virtuais. Era a minha chance de recomeçar do zero, de um jeito diferente. Chegando em Minas Gerais, para cursar Artes Cênicas, desinstalei todos os aplicativos de redes sociais e desliguei o celular. Guardei no fundo do guarda roupas. E que comecem os jogos.

Perdi a conta de quantas vezes enfiei automaticamente a mão no bolso direito da calça. Vazio. Meu cérebro levava um choque toda vez: esqueci meu celular! Eu ria de mim mesmo. Andando na rua, eu ouvia o toque do meu whatsapp. É sério, eu ouvia. Meu cérebro começou a me pregar peças. Às vezes eu precisava abrir a mochila e me certificar de que ele não estava lá dentro vibrando, porque a sensação era real. Algumas coisas você pode substituir facilmente, como um relógio ou um calendário. Mas como fazer com o Maps? E a câmera? E como viver sem ouvir música? Ter que ir até o banco pra poder fazer uma transação de 2 minutos, encontrar um computador disponível no laboratório para pesquisar algo simples, ler jornais na biblioteca para saber o que está acontecendo no mundo, tudo exigia que eu fosse até algum lugar. Era preciso que eu estivesse, de fato, lá, ou eu não estaria. O meu eu virtual já não alcançava o mundo todo. E era assustador me dar conta, pela primeira vez, de que todas as pessoas ao meu redor estavam com um celular na mão, independente de onde estivéssemos ou do que estivéssemos fazendo. E era assustador como isso era tão natural. O diferente ali era eu. O celular era uma extensão do corpo humano e eu estava vivendo sem uma parte de mim.

E como fazer novos contatos? No começo era engraçado ver a cara de espanto das pessoas ao me ouvirem dizer que não tinha celular. Era quase como dizer que não tinha sangue. “E como você faz pra viver?”. Me sentia nos anos 90 perguntando o endereço de e-mail de alguém. Logo nas primeiras semanas de aula, o que era engraçado foi perdendo a graça e virando um problema. Criaram-se os grupos da turma no whatsapp e no facebook que serviriam para, além de compartilhar memes e organizar festas, compartilhar material didático e organizar as atividades do semestre. “Mas e o Gustavo?”. Ficou acordado que alguém me encaminharia o conteúdo por e-mail. Perdi a conta de quantas vezes fui à universidade sem saber que a aula havia sido cancelada. Ou quantas vezes fui à uma reunião que fora adiada. Quantas vezes chegava na aula sem ter lido o texto base, compartilhado no facebook. Ironicamente uma das primeiras coisas que nos dão na universidade é um e-mail funcional e um login de acesso à uma área acadêmica virtual onde supostamente os professores compartilhariam o material das disciplinas. E eu ainda acreditei.

Foi aí que senti o outro lado do discurso da inclusão, da famigerada conexão, que as ferramentas digitais oferecem. Ausente no mundo virtual, fui sendo excluído também no real. A conexão falhou. Não estávamos logados na mesma plataforma, usando a mesma linguagem, compartilhando os mesmos dados. Não foi possível carregar. Tente de novo mais tarde. Erro. Tente reiniciar. Verificou a conexão? Senha incorreta. Não foi possível confirmar que você é você mesmo.

Ninguém escreve e-mail. Ninguém telefona. Ninguém se encontra.

Mas o ser humano tem uma ótima capacidade de se adaptar e, apesar dos contratempos, eu me sentia incrivelmente livre. Me sentia presente onde eu estava. E cada vez mais eu estava conectado a mim mesmo e ao que se passava ao meu redor. Passei a perceber coisas em mim e no meu dia que nunca havia me dado conta. Os dias sem as horas de cabeça baixa eram tão incrivelmente mais longos e melhor vividos. Passei a ouvir melhor as pessoas e, o que antes eu podia refletir antes de digitar e clicar no botão de enviar, agora era preciso refletir antes de falar. Voltei a observar a rua. As casas. As pessoas. Os bichos. E como fotógrafo isso foi fantástico. Já não existia mais a necessidade de compartilhar instantaneamente minha fotografia, não fotografava exclusivamente para mostrar ao outro, agora eu apenas fotografava. As despedidas passaram a ser despedidas de verdade, até o outro dia quando um novo encontro de verdade acontecia. A sensação de chegar em casa ao final do dia, ligar o computador e ler o e-mail de alguém querido é indescritível. Igual a sensação de respondê-lo. As palavras são pensadas. Você reflete sobre a frase e os parágrafos. A mensagem é maior, com mais conteúdo. Não se usa “kkk” ou figurinhas para representar uma ideia, você precisa escrever a ideia com palavras. Descrever os sentimentos envolvidos. Tem que contar ao outro o que seus olhos viram naquela semana. É um exercício lindo. Teria sido tão mais prático ter tirado uma foto com o celular e postado nos stories. Mas leite puro de vaca é tão gostoso. Já experimentou?"

Tem alguma experiência transformadora? Mande sua história para nossa série "Voz da Experiência" no Facebook ou Instagram. Você também pode sugerir pautas pelo e-mail: ladob@news.com.br ou no WhatsApp do Campo Grande News (67) 99669-9563.



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