Indígena defende TCC e emociona ao reconhecer sua própria história
Ao se deparar com poema, Gislaine decidiu reencontrar sua verdadeira história através de uma narrativa sensível
No início da semana, não teve um componente da banca de apresentação do Trabalho de Conclusão de Curso da acadêmica de Letras, Gislaine Gamarra Ajala, que conseguiu segurar o choro. A sensibilidade como ela coloca a própria história, o sonho de ser professora e que só a educação é capaz de mudar a vida demonstraram uma resiliência que merece ser contada. Por isso, a introdução em primeira pessoa de sua monografia é a Voz da Experiência de hoje, onde ela conta como depois de anos, um poema foi o gatilho para reconhecer a própria identidade indígena.
"Eu, Gislaine Gamarra Ajala, acadêmica do curso de Letras, habilitação Português/Inglês, da UEMS (Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul), unidade de Jardim, nasci na cidade de Caracol e tenho orgulho de dizer que tenho sangue indígena.
A herança genética e cultural é dos meus pais biológicos. Eu convivi pouco tempo com eles, fomos afastados por questões que só agora compreendo por conta do peso social, histórico, do preconceito e da marginalização dos povos ameríndios na sociedade não indígena.
Meu pai biológico, Menegildo Duarte Ajala, foi casado com minha mãe, Romilda Gamarra, desta união nasceram três filhos, duas meninas e um menino. Meu pai era trabalhador braçal nas fazendas localizadas próximas ao município de Caracol e demais cidades adjacentes. Ele por ser indígena e analfabeto, sentiu muitas vezes a desvalorização do seu trabalho. Tornou-se alcoólatra como forma de aliviar suas dores.
Na minha infância e de meus irmãos não fomos poupados dos rótulos como, por exemplo, de 'raça preguiçosa', 'aqueles que são fedidos', entre tantos outros atribuídos pelos não-índios. Aos meus cinco anos de idade vi minha família desfazer-se por causa do desemprego, do preconceito, do alcoolismo, da fome, em síntese, da miséria. Meus pais divorciaram-se, minha mãe dizia não aguentar mais aquele sofrimento e deixou-nos com o nosso pai.
Três crianças, uma menina de sete anos, eu, com cinco anos de idade e meu irmão de dois anos tínhamos que cozinhar na precariedade, cuidávamos de nossas próprias roupas, e sobrevivíamos na ausência do nosso pai. Meu irmão caçula ficou desnutrido e ficou muito doente. Foi então que vieram as denúncias, o Conselho Tutelar foi acionado por vizinhos, pois estávamos vivendo com muita precariedade em condições quase desumanas.
Os conselheiros vieram e avaliaram nossa situação, três crianças em situação de miséria e vulnerabilidade. As duas mais velhas em idade escolar. Era durante o período eleitoral, por isso os conselheiros ficaram impedidos por meios legais de realizar o atendimento da nossa família, visto que qualquer ato de solidariedade seria considerado compra de voto. Mas, comovidos com a nossa situação, os conselheiros atuaram, conseguiram alimentos e roupas para nós. No entanto, foram penalizados por tais ações solidárias.
Mas tudo isso era temporário, o alimento acabava, meu pai precisava urgentemente de um emprego, pois sua família não queria aceitar as crianças, pois eram três a mais para alimentar, nossos avós paternos eram alcoólatras e frequentemente brigavam com os outros filhos. Meu pai temia por nossa segurança.
Por isso lembro-me de ver meu pai chorando ao conversar com o conselheiro, mais tarde entendi o porquê daquelas lágrimas. Ao se derramar em lágrimas, ele estava pedindo ao conselheiro que encontrasse uma boa família para cuidar de seus filhos, pois ele não poderia naquelas condições e não queria nos deixar sozinhos com estranhos que não confiava, seu único pedido foi para que não separasse os três, ou pelo menos permitisse que tivéssemos contato.
Os conselheiros comovidos com aquela situação então foram atender ao pedido daquele homem. E mais uma vez sentimos o preconceito que a sociedade tem em relação aos indígenas por conta na nossa inserção na sociedade. O processo de adoção foi doloroso. Algumas famílias desejavam adotar sob a condição das meninas para babás, ou até mesmo para empregadas, mas nunca como filhas, pois consideravam 'os índios feios e preguiçosos'. Já o nosso irmão, de dois anos, por ser menino e bebê, ainda tinha mais chances.
Após todos esses episódios em nossas vidas finalmente uma luz, um dos conselheiros decidiu, juntamente com sua família, adotar as três crianças em famílias próximas.
Ao ingressar na UEMS foi quando pude ampliar e conhecer mais sobre o contexto dos povos indígenas nas diferentes disciplinas do curso e em eventos de natureza científica que abordavam temáticas indígenas e de combate ao preconceito. Durante este percurso das aulas de Língua Portuguesa III, no 3º ano de Letras, as leituras de um poema em especial acionaram em mim o gatilho para que eu pudesse trazer à tona parte dos sentidos e das muitas leituras possíveis. De modo especial destaquei minha história de vida, agora de motivação de pesquisa, para as questões semânticas e de uso da Língua Portuguesa centradas na temática indígena. O gatilho foi a leitura do poema 'Genocíndio' do poeta sul-mato-grossense Emanuel Marinho.
Desse modo, delimito para objetivo geral realizar a interpretação dos versos desse poema , associado ao percurso testemunhal em primeira pessoa. Com isso problematizamos꞉ por que a leitura de 'Genocíndio' tocou-me de tal modo a ponto de fazer emergir os preconceitos vividos na minha infância e o desejo em reconhecer minhas origens indígenas a partir das leituras de estrofes de um poema?
Mas o ato de testemunhar possibilita que a memória de um povo não se apague, mesmo que seja doloroso não devemos calar, testemunhar tornou-se um ato de resistência.
O estudo dos versos do poema possibilitou-me refletir sobre a necessidade de se buscar um sentido nas denúncias feitas pelo autor e além de possibilitar toda essa reflexão em relação ao poema os versos de Emmanuel despertaram em mim a necessidade de buscar uma identidade, encontrei na graduação a chance de falar algo que por muitos anos tornou-se um fardo em minha existência.
Entre muitos pontos trabalhados até aqui, o presente trabalho permitiu-me encontrar minha identidade, minhas raízes. Hoje posso afirmar que encontrei uma conciliação com o mundo, um elo que faltava; antes não pertencia a nada, agora tenho um alicerce e pretendo explorá-lo para enriquecer minha identidade e da futura geração que cresce ao meu lado".
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