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Comportamento

Orla é moradia de africano artesão que sonha em escrever um livro

Com cabana improvisada na Orla Morena, ele conta história que começou na África e passou pelos navios da Marinha em São Paulo

Danielle Errobidarte | 17/04/2020 07:30
Camu vive há pelo menos dois anos na Orla Morena. (Foto: Paulo Francis)
Camu vive há pelo menos dois anos na Orla Morena. (Foto: Paulo Francis)

Há onze anos em Campo Grande e dois na Orla Morena, Camurupim, como é conhecido, fez do cruzamento da Avenida Noroeste com a rua Antônio Maria Coelho, seu lar. Bem antes de entrar na moda a estampa “verde militar”, ele já usava a cor no macacão que combina com a botina e o chapéu de couro. De origem africana, o nome é o mesmo de registro, e veio de alguma etnia do continente de origem. Na “cabana”, como chama sua casa, expõe mais de 15 filtros dos sonhos, de todos os tamanhos e cores. Mas ele garante que a especialidade das mãos de artesão queimadas do sol são os insetos feitos de fio de ferro. Durante a conversa, ele terminava um escorpião.

Conhecido por “Camu” pelos moradores da Vila Planalto, quem passa de carro ou para no sinaleiro que fica na sua varanda, o cumprimenta e reconhece. “Falem bem desse cara, ele é um patrimônio do bairro”, grita um motorista. O restaurante que costuma comprar marmitex estava fechado hoje. Ele olha para o pulso e no relógio marca 15h21. Camu ainda não havia almoçado.

O chapéu faz sombra na expressão marcante de Camu que mesmo na rua não dispensa o uso da máscara. (Foto: Paulo Francis)
O chapéu faz sombra na expressão marcante de Camu que mesmo na rua não dispensa o uso da máscara. (Foto: Paulo Francis)

A pandemia do novo coronavírus também afetou seus dias, há pelo menos um mês. De máscara no pescoço, Camu escuta as notícias sobre a pandemia pelo rádio de um colega, também morador de rua, que às vezes vem visita-lo. “Tem sido dias ainda mais difíceis. Mas não é de hoje e nem dessa semana. Desde que o Itamarati desembarcou com os 18 passageiros vindo da China no Brasil, não vendi nenhum artesanato”.

Camu não apenas reconhece o Ministério de Relações Exteriores e muito menos entende apenas de política. Durante a conversa, explica a diferença de animais peçonhentos e não-peçonhentos e sonha um dia em escrever um livro.

“Logo mais eu quero escrever um livro, chamado “brinquedo de criança pobre”. Contaria tudo sobre a vida, não só a minha, e ia mostrar que todo mundo é igual”.

Artesanatos de Camu são filtros dos sonhos e insetos de arame e plástico. (Foto: Paulo Francis)
Artesanatos de Camu são filtros dos sonhos e insetos de arame e plástico. (Foto: Paulo Francis)

Além de política, biologia e literatura, Camu explica para o amigo haitiano que chega para cumprimenta-lo, qual a diferença entre um jornalista e um repórter fotográfico. “Eu falo um pouco de francês, ele é haitiano, mora logo ali embaixo”, explica. Para se referir a Paulo, fotojornalista da equipe, conta ao amigo que não desempenha o mesmo papel que um jornalista. “Jornalista manda a matéria para o jornal, conversa com as pessoas. Ele não, ele é repórter fotográfico, esse é o linha de frente. Qualquer perigo, ele que corre. É como o Tim Lopes, que era jornalista. O repórter fotográfico vem antes dele tirar a foto”.

Durante dois anos Camu diz que morou em hotéis próximos ao local onde fica hoje. Com o aumento do valor das diárias, teve de se mudar para rua.

“Pagava R$25 por dia no quarto mas começou a subir, foi para R$50, daqui a pouco R$60, eu falei “ah não, vou ter que ir para rua”.

Durante o dia, ele expõe o artesanato na calçada e à noite monta uma barraca de lona maior, para se proteger do frio.

Frio é um dos aprendizados na lista de Camu. Numa semana em que a temperatura chegou aos 14ºC na Capital, a estratégia dele é utilizar papelão e plástico como abrigo.

“Vou sobrevivendo ao frio. Já enfrentei -1ºC aqui. Existe só uma coisa para fazer: pegar papelão e plástico. Papelão não deixa entrar umidade e plástico ajuda a esquentar. Só”.

Origens – Camu conta que nasceu na África e veio para o Brasil com a mãe. Trabalhou na Marinha, em São Paulo, como mecânico naval e diz que viajava o mundo nas embarcações. Após ter um filho, hoje com 26 anos, a mãe decidiu voltar com o bebê de apenas quatro meses à época para o país de origem. “Depois de um tempo minha mãe voltou com ele. Fazer o que, se ela gosta de lá não posso fazer nada. Minha mãe só pediu para eu fazer um filho para ela levar para lá e ficar com ela. Ele nasceu aqui e foi criado lá, ao contrário de mim. Eu nasci lá e fui criado aqui no Brasil. Pelo menos lá ele tá seguro, num lugar sem doença”, se referindo ao coronavírus.

Mãos queimadas pelo sol não impedem cuidados com aparência: anéis, relógio e chapeu de couro. (Foto: Paulo Francis)
Mãos queimadas pelo sol não impedem cuidados com aparência: anéis, relógio e chapeu de couro. (Foto: Paulo Francis)

Quanto à esposa dele, conta que comprou uma loja, também de artesanato, após sair da Marinha. Hoje sem família em Campo Grande, os dois se separaram quando ele descobriu que ela se relacionava com seu irmão. “A mãe do meu filho? Dei uma loja pra ela numa galeria na 25 de março, porque até então ela mereceu. Depois ela errou, ela quem adulterou o casamento com meu próprio irmão de sangue. Mas tudo bem, fazer o que. Eu sou forte, continuo tombando mas não caio”.

Se pudesse, Camu afirma que teria a própria loja de artesanato. É seu segundo sonho, depois de escrever um livro.

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Camu não vende uma peça de artesanato desde o começo da pandemia do novo coronavírus. (Foto: Paulo Francis)
Camu não vende uma peça de artesanato desde o começo da pandemia do novo coronavírus. (Foto: Paulo Francis)


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