Professora abraçou angústia de um povo que via história ser esquecida
Maior que a coleção de títulos acadêmicos, para Denise o mais importante é a relação construída com as comunidades
Os títulos acadêmicos que a professora Denise Silva conseguiu obter ao longo da sua formação são detalhes perto da grandeza que ela enxerga nas experiências vividas junto aos indígenas de Mato Grosso do Sul, mesmo assim ela faz questão de mencionar cada passo na vida acadêmica, já que em cada um deles, ela viveu uma experiência enriquecedora na luta pela preservação da língua indígena no Estado, e ainda vive. Os caminhos que fizeram a professora nascida em Miranda dedicar sua vida pela valorização de uma cultura ela conta aqui no Voz da Experiência.
Nasci numa comunidade rural localizada ao lado da terra indígena de Cachoeirinha, no município de Miranda MS, estudei em sala multisseriada até a 4ª série do Ensino Fundamental. Para cursar as séries finais do ensino fundamental, utilizei o transporte escolar e fui colega de turma de muitos indígenas, visto que utilizávamos o mesmo ônibus. E desde criança era fascinada pela língua e pela cultura do povo Terena. Ao terminar o ensino fundamental, terminava também as possibilidades de estudar, pois só havia linha de transporte escolar no período matutino e o ensino médio era ofertado no noturno.
Sempre tive o sonho de ser professora e para concluir o ensino médio fui estudar num internato localizado no Pantanal e mantido pela Fundação Bradesco. Ao concluir o magistério atuei como professora alfabetizadora de uma Escola Municipal que atendia a população ribeirinha do município de Miranda, esse foi o meu primeiro contato com os pescadores. Nesse mesmo ano fui aprovada no vestibular da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul para o curso de Pedagogia. No segundo ano da faculdade, fui contemplada com uma bolsa de Iniciação Científica, com o projeto intitulado Escola Pantaneira: ficção ou realidade, onde além da pesquisa pude participar da elaboração do Projeto Político Pedagógico desta escola. No terceiro ano de faculdade, motivada pelas aulas de educação infantil, me inscrevi na seleção de bolsistas para desenvolver o plano de trabalho sobre a oralidade na Educação Infantil, ali começou a minha aproximação com a linguística. Ainda na graduação tive um colega terena, ficamos amigos e passei a me interessar pela educação indígena, principalmente após conhecer um pouco mais da realidade dessas escolas.
Após terminar a graduação, voltei para Miranda e fui contratada como coordenadora pedagógica da Secretaria Municipal de Educação, nesse mesmo período fui aprovada no concurso público da Secretaria de Estado de Educação para atuar na 1ª etapa da Educação de Jovens e Adultos. Como coordenadora pude acompanhar o trabalho pedagógico desenvolvido nas diferentes etapas da educação básica e modalidades de ensino. Nesse período foram criadas as escolas indígenas, que até então eram extensão da escola rural.
Ao acompanhar a implantação das escolas indígenas, passei a questionar o que era uma escola indígena, visto que o que presenciava era um prédio localizado em área indígena, com professores não indígenas e sem um projeto político pedagógico específico. Ainda nesse período, passei a atuar como orientadora do curso de pedagogia e acompanhar diretamente os professores indígenas matriculados no curso, alguns deles foram meus colegas de sala no ensino fundamental e constatei o quanto vivemos num mundo desigual onde nem todos têm as mesmas oportunidades.
A maior angústia deles, que também tornou minha, era a ausência de um trabalho com a língua materna na escola. Como eu já tinha desenvolvido um trabalho de iniciação científica baseado no trabalho com a oralidade, comecei questionar o modelo imposto pela secretaria de educação e a ouvir a angústia da comunidade diante da perda linguística que pude acompanhar durante esses anos.
Decidi que iria estudar a língua e compreendê-la, para então ajudar os professores na implantação dessa escola diferenciada. Comecei a peregrinação pelos programas de educação dispostos a discutir o ensino da língua, fui aprovada nos programas de Mestrado em Educação de três universidades, mas nesses programas fui orientada a mudar de objeto de estudo do projeto e foi então que resolvi fazer o mestrado em letras. Nunca tinha lido nada sobre sociolinguística, fonética, fonologia e tinha um certo receio da gramática normativa.
O mestrado foi um grande desafio, cursava as aulas da pós-graduação durante o dia e no período noturno assistia as aulas da graduação em letras para tentar entender o que até então era novidade para mim. Muitas vezes pensei em desistir, mas quando ia para campo (aldeia) e via a alegria dos professores em saber que eu estava estudando a língua deles, me motivava a continuar. Tive a felicidade de ser orientada pela professora Marlene Durigan com a Dissertação: Descrição fonológica da língua terena, um trabalho simples, com muitos problemas, mas que era resultado de um esforço coletivo (meu e dos professores terena) que a minha orientadora com muito afeto assumiu para ela também.
Embora os professores indígenas estivessem felizes que eu entendia um pouco da língua e pudesse ajudá-los a refletir sobre ela, percebia que eles queriam algo mais concreto e que pudesse contribuir com as escolas indígenas, foi aí que em 2009 iniciei o doutorado na UNESP de Araraquara com uma proposta de dicionário para a língua terena. Ainda em 2009 fui convidada pela Secretaria de Estado de Educação para realizar as conferências locais e posteriormente a conferência regional de educação escolar indígena, num trabalho que envolveu todas as aldeias de MS.
Nesses encontros o que eu mais ouvia era o anseio da comunidade em ensinar a língua, resgatar onde não era mais falada e principalmente a necessidade de uma educação intercultural, diferenciada e bilíngue, como está na Constituição Federal.
Nesse período o Ministério da Educação criou os Etnoterritórios e os primeiros cursos de Licenciatura Intercultural Indígena. Atuei como professora da primeira turma do Povos do Pantanal que atendia os povos Guató, Terena, Kinikinau, Kadweu e Ofaié. Durante o tempo comunidade do curso de Licenciatura Indígena participei de projetos de pesquisa, extensão e de orientação de alunos do PIBID. Atuei nesse curso enquanto fazia o doutorado e nesse ir e vir pude relacionar a teoria com a prática, analisar os dados com meus alunos e contribuir com a formação de linguistas terena, alguns deles hoje estão no mestrado e no doutorado, sendo pesquisadores das suas línguas, protagonistas das suas histórias, fazendo ecoar as vozes dos que já se foram.
Em 2011 optei por mudar para Miranda para conviver com os terena e aprender sua língua e elaborar junto com eles o dicionário que faria parte da minha tese. E assim fizemos, compilamos um banco de dados de mais de 5 mil verbetes em terena-português, discutimos a estrutura de verbete, transcrição fonética e fonológica e a mudança sonora em curso. Com a proximidade com a realidade das escolas indígenas começamos a sentir a necessidade de materiais didáticos específicos, de cursos de formação continuada de professores e buscando atender essa demanda fundamos o Instituto de Pesquisa da Diversidade Intercultural – IPEDI.
O primeiro projeto desenvolvido pelo IPEDI foi um curso de formação continuada de professores para o ensino da Língua e da Arte Terena, esse curso resultou no primeiro livro didático para a língua terena. Esse material ganhou o prêmio de Tecnologia Social da Fundação Banco do Brasil e com o recurso iniciamos a produção de um material similar para a Educação Infantil, visto que a os professores possuíam licenciatura para as séries finais do Ensino Fundamental, faltando uma formação específica para a educação infantil e séries iniciais.
Em 2013 iniciei o Pós-doutorado em Linguística na UNESP com projeto enfocando as etnociências e suas relações com a língua e a escola. Essa convivência direta com a comunidade permitiu a produção do artigo mudança sonora na língua terena, uma vez que, infelizmente vivenciei o processo de perda linguística e mudança sonora em curso.
Em 2015 participei da comissão que elaborou o projeto da Pós-Graduação lato sensu em língua terena ofertado pela UEMS e em dezembro fui aprovada na seleção para docente do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena Teko Arandu da UFGD. Com o ingresso no curso tive a oportunidade de conhecer o rico território cultural dos Guarani e Kaiowá. Foi uma experiência nova, pois estava diante de um novo povo, que falava uma língua até então desconhecida. Ao longo desses quase 20 anos de docência, essa foi a experiência que mais marcou a minha atuação enquanto docente, no tempo universidade vivenciei a docência compartilhada e isso enriqueceu muito minhas aulas e resultou em artigos e capítulos de livros com colegas de trabalho e com alunos. No tempo universidade ministrei as disciplinas e no tempo comunidade pude acompanhar a alternância em várias aldeias da região e assim conhecer a situação dos povos indígenas do Etnoterritório ConeSul. Permaneci como colaboradora do curso até o término do ano letivo de 2016, nesse período participei do Projeto Atlas Sonoro das Línguas Indígenas Brasileiras; contribuímos na organização de um evento na UNB “Tributo ao prof. Aryon Rodrigues” onde levamos 13 acadêmicos indígenas para apresentar os resultados de suas pesquisas realizadas no tempo comunidade. Participar da formação de um acadêmico indígena, em especial na área de linguagens, é uma dupla realização, de um lado a possibilidade de formar um pesquisador da própria língua, que atuará como professor e como liderança e a isso se soma a esperança de que a língua não morra.
Em 2016 assumi a presidência do IPEDI, continuamos trabalhando com projetos educacionais e culturais nas aldeias de Miranda e passamos a oferecer um projeto de alfabetização de pescadores, pois o município possui um índice altíssimo de analfabetos, sendo quase 15% da população analfabeta, porcentagem maior que a média brasileira e da américa latina. As atividades repercutiram e ganhamos visibilidade nacional, recebemos prêmio do Ministério da Cultura, da Natura, da Fundação Banco do Brasil, do IPHAN e ampliamos as ações desenvolvendo projetos de leitura, música, produção e comercialização de artesanato, produção de material didático e principalmente passamos a atuar na formação de lideranças locais nas comunidades tradicionais do Pantanal (indígenas, rurais e ribeirinhos).
Firmamos parcerias com pesquisadores e universidades e também com outras organizações do terceiro setor, no intuito de formar uma rede que garanta que as comunidades tradicionais do Pantanal tenham acesso à direitos básicos, já garantidos constitucionalmente, mas ainda tão distantes da realidade desses povos.
No final de 2019 optei por solicitar o meu desligamento da Fundação Bradesco para me dedicar aos trabalhos com as comunidades tradicionais do Pantanal, em especial nas ações voltadas para a salvaguarda do patrimônio cultural material e imaterial desses povos, em especial os povos Terena e Kadwéu que passam por um acelerado processo de perda linguística e cultural. Para subsidiar teoricamente esse trabalho ingressei no início de 2020 no pós-doutorado em Estudos Culturais na UFMS com o objetivo de estudar questões relacionadas ao território enquanto produto cultural, buscando estratégias para a inserção desses saberes no roteiro turístico da região, visando a valorização desse conhecimento ancestral, a geração de renda para as comunidades, mas principalmente buscando um impacto positivo na autoestima desses grupos historicamente marginalizados.
Nesses 20 anos dedicados aos estudos dos povos indígenas e demais comunidades tradicionais tive o privilégio de vivenciar experiências únicas e aprender o que não se aprende nos bancos da universidade.
Estar numa comunidade tradicional é uma oportunidade de aprendizado para a vida, e posso dizer sem medo que muito do que sou devo à essas pessoas que me acolheram com amor, com respeito, que acreditaram nos meus sonhos, que compartilharam comigo seus sonhos e suas dores e que hoje caminhamos juntos, construindo um mundo mais bonito que nossos corações sabem ser possível.
O filósofo Charles Einstein aponta que estamos na era o interser, e o filme Avatar tem uma cena clássica onde a protagonista diz “eu vejo você” e para mim não há título ou prêmio maior do que olhar nos olhos de um indígena e de um pescador e me ver neles e ver eles em mim, olhar para trás e ver que aquela menina da zona rural conquistou seus sonhos e teve o privilégio de voltar juntos aos seus para conquistar sonhos coletivos... que apesar dos títulos acadêmicos que pude obter ao longo da minha formação, para mim o mais importante é a relação construída com as comunidades, nossa história está sendo materializada nos alunos que formei, nos registros que fizemos, nos sonhos que compartilhamos, nas dores que sentimos, nos caminhos que estamos percorrendo de mãos dadas... e é assim que, mesmo em tempos difíceis, seguimos desenvolvendo ações que fomentem políticas linguísticas que auxiliem as comunidades tradicionais do Pantanal na salvaguarda do seu patrimônio cultural material e imaterial.
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