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Comportamento

Quando o Alzheimer bateu à porta, filha virou mãe de quem não sabe mais quem é

Paula Maciulevicius | 14/12/2015 06:34
Gioconda e Leontina. Filha e mãe que inverteram os papéis. (Fotos: Paula Maciulevicius)
Gioconda e Leontina. Filha e mãe que inverteram os papéis. (Fotos: Paula Maciulevicius)

A diferença de idade de 22 anos ficou para trás. A vida, o tempo, os anos e a doença fizeram com que os papéis na casa de Gioconda e Leontina se invertessem. A filha virou mãe da própria mãe, depois que o Alzheimer bateu à porta. O diagnóstico veio há 5 anos, mas quem olha as gravações de vídeo da família no passado, enxerga hoje que os traços da doença começaram lá atrás. 

"Só hoje ela já me chamou três vezes de mãe", conta a filha que mora e cuida da mãe, Gioconda Marchini, de 60 anos. A tristeza de quem ouve não está só na associação do nome. Gioconda deixou de ser filha para cuidar como mãe e por vezes é vista como outras personagens dentro de casa. A feição dela se tornou irreconhecível para dona Leontina.

Na semana que passou, na reunião da Abraz (Associação Brasileira de Alzheimer), Gioconda comentou o quanto sentia falta de passear no shopping com a mãe, mas que agora a movimentação e o barulho a perturbam muito mais. Como sugestão do grupo, ela, a mãe e a irmã Silvana fizeram o programa, mas em um shopping tranquilo. E na praça de alimentação do Bosque dos Ipês, elas abriram um pouquinho do coração para falar dessa rotina de quem se perdeu de si.

Dona Leontina vê na filha desde mãe, à empregada e amiga.
Dona Leontina vê na filha desde mãe, à empregada e amiga.

"Hoje perguntaram se ela queria uma cadeira de rodas, porque ela se cansa de andar. Mas eu não quero, se eu deixar, eu tenho medo de ela se largar", explica a filha. O Alzheimer fez com que dona Leontina perdesse e nunca mais encontrasse o vocabulário. A doença se apresenta como demência, ou perda de funções cognitivas, que são: memória, orientação, atenção e linguagem, causada pela morte de células cerebrais. Quando diagnosticada no início, é possível retardar o avanço e ter mais controle sobre os sintomas. Mas é incurável.

"É horrível, a gente sente que ela que falar e tem hora que ela se irrita", explica Gioconda. A mãe não tem noção de nada, não compreende a doença e nem tampouco aceita tomar remédios. Diz que tem uma saúde de ferro, embora tenha mesmo, é 'só' o Alzheimer que se manifestou.

Gioconda tem 60 anos, é separada, mãe de filhos já adultos e aposentada. É a filha mais velha, a que teve a maior coordenação da mãe dentro da própria casa, na criação dos netos e também é que mais custa a aceitar as limitações que vieram com a doença. "Foi difícil enxergar isso, relutei muito. As pessoas falam que é como se fosse uma criança. Mas criança você fala, ela obedece e evolui. E essa parte é difícil, entender que ela não entende", descreve.

De início, dona Leontina estava mais agressiva e foi justamente com a aceitação da filha que ela passou a ficar mais calma. O primeiro sintoma "óbvio" apontado pelas filhas, de que ela já "se foi" foi não ter reconhecido a própria casa. Coisa que aconteceu há mais de 3 anos. "Eu tinha que andar de carro com ela, botar ela de novo e voltar para casa. Uma hora dava certo, outra, não", conta Gioconda. 

Em passeio no shopping, rotina prova que o afeto tem mostrado ser o melhor remédio.
Em passeio no shopping, rotina prova que o afeto tem mostrado ser o melhor remédio.

As filhas relatam que não dá para saber exatamente o que trouxe à tona os sinais da doença. Agora Gioconda lembra de fatos de 11 anos atrás, quando a mãe guardava dinheiro, não se lembrava e depois dizia que haviam pego. Mas como a filha trabalhava, não se atentou e a vida da mãe corria mais solta.

O diagnóstico veio há 5 anos, quando as ausências e esquecimentos ficaram mais intensos. Um dos exames era o se memorizar 15 palavras e lembrar, posteriormente, de pelo menos cinco. Desde então, os remédios para retardar o avanço da doença não saíram mais do criado mudo.

Juntas, almoçamos. Dona Leontina ainda come sozinha, mas pouco. Se sente satisfeita logo e em seguida tentar mastigar um guardanapo. As filhas, atentas o tempo todo, dizem que isso é sinal de mais fome, que o guardanapo não tem o gosto do strogonoff de frango do prato. E ela recusa a batatinha frita dizendo que não gosta, mesmo tendo, minutos antes, comido.

Dona Leontina tem 82 anos. Era uma mulher moderna, dona de açougue, dirigia uma Rural Willys para entregas de carne. Sempre autoritária, tomava conta da vida das filhas. Uma cena, em específico, nunca saiu da memória delas: a mãe estava em casa com o marido e os seis filhos, quatro deles homens e ainda assim não pediu ajuda de ninguém para carregar um botijão de gás lá da cozinha.

Muito ativa, não parava por nada e acordava todos com café da manhã na cama. Talvez seja por isso que doa ainda mais aceitar as condições impostas pelo Alzheimer hoje. "A partir do momento que você passa a aceitar, você passa a sofrer", explica a outra filha, Silvana Marchini Coelho, de 52 anos.

As meninas ouvem, por vezes, conhecidos tentando amenizar o sofrimento, dizendo que a mãe delas já se foi e quem está ali é outra pessoa. "Eu sei que é para eu não sofrer mais, não chorar tanto, que eles dize que ela não pensa, não sente e quem sofre é só quem está do lado. Mas não, no fundo, ela sofre. Como não? Quantas vezes ela tenta falar uma coisa para a gente e não consegue completar o raciocínio? Como uma pessoa assim não sofre?" se perguntam as duas.

Quando Leontina se lembra que já enterrou os pais e o marido, chora. E quando questiona onde está Moacir, o marido, ouve das filhas que já saiu e em seguida esquece.

Ir ao banheiro também já é complicado. E quando a filha chega com ela à porta, entra e faz primeiro, para lembrar a mãe como é se sentar no vaso. Os médicos disseram que elas viveriam um privilégio: de ver a mãe se lembrar da infância com riqueza de detalhes. Coisas que elas não sentiram ainda.

Gioconda é mãe, filha, emprega, amiga. "Eu sou muita gente e eu nunca sei quando sou a filha. Às vezes acho que ela não se lembra, mas como o subconsciente dela é informado desse ciúmes?" se pergunta. Dona Leontina sente ciúmes de Gioconda com os netos e também com quem a acompanha num almoço.

Sobre ser mãe da própria mãe, Gioconda diz que não pensa, procura não pensar nisso. "Eu dou um beijinho nela, porque quanto mais você chamega, melhor ela fica". A irmã, Silvana, completa que "uns aceitam, outros não" e que dói sim, mas ela não admite ter essa dó. "Tenho que pensar nela. É muito mais fácil quando é para você brigar, ficar brava..."

Nas terças de reuniões da Abraz, quando Gioconda, que mora com a mãe, vai trocar experiências com o grupo, é a vez do irmão chegar e lhe fazer companhia. "Um dia meu filho abriu a porta ela só falou: -oi, quer entrar? Mas olha eu estou esperando o meu filho". Quem bateu era justamente esse filho.

As reuniões da Abraz servem de apoio para parentes e cuidadores e acontece toda segunda terça-feira do mês, na sala da Paróquia Sagrado Coração de Jesus, gratuitamente.

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Ao lado das filhas, ou das mães, Gioconda e Silvana.
Ao lado das filhas, ou das mães, Gioconda e Silvana.
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