Depois de passar fome em Campo Grande, ele virou personalidade de fogo
Faça chuva, faça sol, ele está ali, sentado atrás do balcão da loja na rua 7 de Setembro, super disposto a contar uma boa história. Policarpo Matias de Lima é o dono da mais antiga casa de fogos de Campo Grande, a Brasfogos. Lá se vão 40 anos de portas abertas e lembranças.
Depois de tanto tempo, ele ainda consegue rir do dia em que passou a perna em todos os jornalistas da cidade. Era época de movimentação intensa no Centro da cidade, há décadas, quando vender fogos de artifício era certeza de falência. “Ninguém comprava fogos. Em dias de festa, preferiam sair por aí atirando. Sempre tinha um morto por bala perdida”, conta.
Com a freguesia miúda, ele resolveu apelar. Diz que ligou para todas as rádios e também para a TV Morena e forjou uma denúncia. “Primeiro tirei todos os fogos das caixas e coloquei só as embalagens na prateleira. Depois liguei para a imprensa e até para o delegado e disse que tinha uma loja na 7 de Setembro cheia de fogos, prontos para explodir”.
O golpe deu certo. Em poucos minutos a Polícia estava ali na porta, apreendendo as caixas vazias. “O delegado chegou nervoso e levou tudo, sem olhar se tinha alguma coisa dentro. A imprensa ficou noticiando o caso o tempo todo. No outro dia, isso aqui ficou lotado de gente comprando. Nunca tive propaganda melhor”, lembra com uma gargalhada.
Mas ele garante que o principal nesta história toda nem foi o movimento. "Eu estava cansado do povo morrer por causa de tiro. Depois disso, não tinha mais desculpa para sair por aí atirando. Se quisesse comemorar, era só comprar fogos de artifício".
Até hoje, o que mais gosta de falar é sobre segurança. "Nunca tive notícia de um cliente que se feriu, nunca tive uma explosão na loja. Aqui não faço nada para economizar. O produto é de qualidade, isso é mais importante. Quem explode por aí, é porque fabrica pólvora".
O senhor baixinho, magro, com cara de feliz, já passou por maus bocados. Depois de abandonar a miséria no Rio Grande do Norte, onde “passava fome de verdade” com os pais e 12 irmãos, ele foi servir ao Exército em Três Lagoas. Ao dar baixa, resolveu vir para Campo Grande, sem dinheiro algum. “Só tinha recebido uma passagem do Exército e vim com a cara e a coragem”.
Ainda com o cabelo de soldado e o ofício de cabeleireiro (aprendido ainda na infância) ele “acampou” na Praça Ary Coelho. “Não tinha outro lugar para ficar, então fiquei dormindo ali. Foram dois dias ao relento, até que uma serenata salvou a pele do ex-soldado.
“Tinha 2 militares fazendo serenata na praça e me viram ali, sem ter o que comer. Perguntaram se que estava com fome e acabaram abrindo uma conta para mim na Churrascaria Maranhão, para eu almoçar, jantar e tomar café”.
Com a alimentação garantida, ele conseguiu também uma vaga de cabeleireiro. “Uns taxistas ali da rua Maracaju resolveram me levar até um salão e disseram que se eu cortasse bem o cabelo deles, iam conseguir um emprego para mim. Foi assim que eu comecei a trabalhar, no Salão Cristal”.
Depois 27 anos como cabeleireiro (contando com o tempo de menino que trabalhou no RN e em Campo Grande), surgiu a oferta de vender fogos de artifício. Policarpo aceitou na hora, tempos depois largou o salão de beleza e hoje passa os dias colhendo frutos e “inventando moda”, diz a esposa com quem está casado há 50 anos.
Ele conseguiu trazer os pais para uma vida melhor em Mato Grosso do Sul, criou os filhos “que só dão orgulho” e agora o neto de 14 anos prepara um livro sobre as peripécias do avô, causos que não cabem em uma só reportagem.
Quando chegamos à loja, ele produzia um kit de fogos, com caixas, fio e uma imaginação...”Eu sou assim, antes de dormir fico 10 minutos acordado pensando no que vou inventar no outro dia. Penso sempre pra frente”, brinca o velhinho de 77 anos.
Policarpo é um dos convidados de honra para o Casório do Ano, festa do Lado B que ocorre no próximo sábado, a partir das 17h, na Rua do Laticínio, em Campo Grande.