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Após ler absurdos, Irene conta como é viver com a bipolaridade

Aos 70 anos, a aposentada abriu as portas de casa e das memórias para contar as dores da doença

Natália Olliver | 14/07/2023 08:00
Irene emocionada ao falar da batalha que trava contra a doença (Foto: Henrique Kawaminami)
Irene emocionada ao falar da batalha que trava contra a doença (Foto: Henrique Kawaminami)

Irene dos Santos atende o portão como quem espera por uma encomenda. A mulher de 70 anos me recebe em casa pois anseia falar o que há muito foi negligenciado por ela, a bipolaridade, ou TAB (Transtorno Afetivo Bipolar). Ela convive com a doença desde pequena, mas só foi diagnosticada aos 19 anos. A necessidade em dialogar sobre o tema surgiu após um episódio traumático vivido na última semana: o sumiço repentino da irmã, Maria de Lourdes Pacheco dos Santos, de 60 anos.

A técnica de enfermagem aposentada saiu para ir ao banco na última quinta-feira (8) e não voltou à casa onde mora com Irene, no bairro Vila Popular. Três dias depois ela foi encontrada na cidade de Presidente Prudente, interior de São Paulo, a 430 quilômetros da capital sul-mato-grossense. Lourdes também sofre com a bipolaridade e estava em surto no momento em que desapareceu.

Triste com os comentários gerados pela notícia nas redes sociais e as que já ouviu ao longo da vida, Irene se emociona ao falar que o episódio foi a gota d’água e que se esconder não era mais uma opção. Sozinhas, as irmãs contam com o amparo uma da outra para conseguir continuar vivendo. Lourdes não aparece para conversar comigo, ainda está se recuperando do episódio que quase a ceifou a vida. Irene fala pelas duas.

“Aceitei falar para desmistificar algumas coisas. A convivência com a gente é complicada, nós reconhecemos isso. É muito difícil. O bipolar é uma pessoa que alterna euforia (mania) e tristeza (depressão). Nessa fase não conseguimos nem fazer higiene pessoal. Em uma fase prolongada de euforia, fazemos coisas que nos prejudicam também, é como se não tivesse freio”.

A aposentada mostra a quantidade de remédios que a irmã toma diariamente (Foto: Henrique Kawaminami
A aposentada mostra a quantidade de remédios que a irmã toma diariamente (Foto: Henrique Kawaminami

Tratamento tardio - Por achar que o tratamento era irrelevante, e que os períodos de crises eram poucos comparados aos efeitos colaterais causados pelos remédios, Irene nunca tratou a bipolaridade. A situação mudou há apenas 20 anos. Ela se arrepende de não ter começado antes. Segundo a aposentada, além do medo em estar dependente de medicamentos, a não aceitação da doença também teve peso na decisão.

“Tem que assumir. Eu enfim fiz isso, tenho uma doença, eu sou doente e é isso que a gente não quer. Ela é uma doença como outra qualquer outra. Não podemos descuidar do tratamento. No final da vida vai olhar pra trás e ver que, se eu tivesse tratado, talvez eu teria tido uma vida minimamente normal. No meu caso tive todas as oportunidades pra isso”

A culpa consome Irene, que chora ao lembrar do arrependimento. Ela acredita que pela idade já não há possibilidade de melhora. “Vem as crises depois passam aí pensava que eu tava bem, eu era jovem, não sabia. Pensava que era assim, mas a doença esconde o nosso eu. Começava a tomar remédio e parava, nunca tratei, mas não melhora, nunca melhora. Tomamos remédios até morrer".

Sentimentos - Irene fala muito sobre espiritualidade, um dos alicerces que encontrou para seguir adiante. A irmã também se amparou na fé para acreditar em dias melhores. Em determinado momento da conversa ela chora demasiadamente.

“Tem um texto em apocalipse que fala que Deus fará nova todas as coisas, que não vamos lembrar do sofrimento, que seremos felizes. Eu vivo esperando, quero experimentar esse sentimento que nunca tive. Eu nunca tive uma alegria verdadeira, tive momentos prazerosos”.

O sentimento de solidão é amplificado pelo fato do ex-marido ter, segundo ela, a deixado, há quase 40 anos. Irene conta que não conseguiu manter o casamento por causa da doença. Apesar de ter sido ela quem pediu a separação, Irene conta que hoje entende os sentimentos do homem .

"Ele cansou, me deixou, foi muito difícil pra ele, hoje eu reconheço. Ele nunca sabia onde eu tava, eu saia de casa e falava que ia separar dele, que ia para casa dos meus pais. Isso é desesperador, não sabemos onde está, o que está passando. Agora que a minha irmã fez isso eu senti o quanto é difícil para ele. Por isso meu marido cansou”.

Irene na juventude em uma das viagens pela Europa (Foto: Henrique Kawaminami)
Irene na juventude em uma das viagens pela Europa (Foto: Henrique Kawaminami)

Relacionamento - De acordo com ela, as emoções e sentimentos do bipolar são multiplicados por dez. Irene teve três noivos e se casou duas vezes. O primeiro casamento foi com um italiano. A doença também atrapalhou a relação.

“Achei que era emocional a doença mas hoje sei que não é, são estruturas do cérebro. Eu  ficava buscando alguma coisa que preenchesse o buraco que sentia. Tive uma vida boa na infância, da adolescência meu pai faliu e eu queria dinheiro, como todo jovem.Me casei com um homem bom e rico. Tive tudo o que se pode querer, mas  também não era sobre isso, porque minhas crises ficaram ainda piores”.

O companheiro fazia todas as vontades da mulher. Desde viagens ao litoral a passeios internacionais. Na lista de países visitados por irene está grande parte da Europa. Itália, França, Paris, Portugal, Suécia.

“Quando era inverno em São paulo ele me mandava para o litoral porque eu gostava do sol. Conheci parte do mundo”. As poucas fotos que possui mostram Irene jovem e feliz no continente europeu.

Pituco é um dos refúgios da aposentada (Foto:Henrique Kawaminami)
Pituco é um dos refúgios da aposentada (Foto:Henrique Kawaminami)

Rotina - Ela me convida para um café, e me mostra Pituco, o Hamster Anão Russo. Neste momento, o único da entrevista, ela sorri. A rotina é baseada em leituras no aparelho celular, leituras da bíblia, palavras cruzadas e cozinhar. ”Eu gosto, tenho amor.

Suicídio - Irene conta que já tentou tirar a própria vida mais de uma vez. No caso da irmã, Maria de Lourdes, o episódio foi o primeiro. “A gente sempre tem uma carência que nada supre, é uma dor que não é causada pela falta, porque tenho tudo o que preciso. Uma casa simples, não passo necessidades financeiras, mas mesmo assim o sentimento é um vazio desesperador”.

A psiquiatra das irmãs, Viviane Vasconcelos Galvão explica ao Lado B que o TAB não tem cura e sim controle, feito por meio de medicação, psicoterapia e alguns cuidados como disciplina com o horário de sono, exercícios físicos, e evitar o uso de bebidas alcoólicas e drogas.

“Não é coincidência as duas  terem, pois a incidência é grande dentro da mesma família, quando já se tem casos anteriores. Se informar sobre a doença, aceitar seu diagnóstico, fazer terapia, ter disciplina com o tratamento e com o restante dos quesitos da vida. O TAB é impulsivo, recaindo em alguns comportamentos, que dependendo da religião não é bem interpretado”.

Ela também comenta que a bipolaridade começa desde a infância, mas que com o passar dos anos as manifestações ficam mais intensas.”São crianças inquietas, opositoras, com alguma alteração de comportamento, às vezes leve e imperceptível, com o passar dos anos os sintomas vão ficando mais aparentes”.

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