Peregrinos não precisam ir tão longe, nosso "Caminho de Santiago" fica a 60km
De Santo Antônio a Santo Antônio, são 60 quilômetros de caminhada por estradas rurais que vão transformar em peregrinos quem já sente na alma a vontade da trilha. Da Paróquia de Santo Antônio, em Campo Grande, até o Santuário de Santo Antônio de Pádua, em Terenos, o caminho que leva o nome do padroeiro da Capital pode ser percorrido em três dias.
Projeto antigo do Sopa de Pedra, agência de turismo e aventura, o "Caminho Rural de Santo Antônio" é uma rota pedestre que passa por lindas paisagens, estradinhas de terra e pequenas propriedades que servem de abrigo. Na prática, é um treino para quem quer alçar caminhos maiores como o da Fé, da Luz e das Missões, no Brasil e de Santiago da Compostela, na Europa.
Oficialmente, a primeira turma só sai no Carnaval de 2017, que ano que vem cai no fim de fevereiro, mas de treino, Nilson Young, guia do Sopa levou um amigo caminhante de longas trilhas o diretor de teatro Fernandes F.
"Neste roteiro rural, fizemos a experiência para sentir como é caminhar três dias e ao mesmo tempo, fazer contato com os moradores da região", explica Nilson. A rota traçada por eles já tem anos, desde a época em que o Sopa se resumia à mountain bike. "É uma homenagem ao padroeiro de Campo Grande e em Terenos, existe um santuário, que tem, segundo a crença católica, um pedaço de pele do braço de Santo Antônio", explica o guia.
Foi aproveitando esse gancho e por ser tão próximo de nós, que o Sopa deu o nome e estruturaram a rota. Ao contrário da caminhada feita por fiéis todos os anos, o caminho de Santo Antônio não passa pelo asfalto e sim pela zona rural. Onde Nilson e Fernandes bateram, tiveram além de pouso, uma calorosa recepção. Comida não faltou.
A saída foi na última quinta-feira, dia 24, às 8h da manhã, da frente da UEMS e foi até 3h da tarde, numa chácara já no assentamento Conquista, próximo ao Aguão. "Mas a gente parou no rio, tomou banho, parou para pegar manga, caju", descreve Nilson.
No primeiro dia foram 21 quilômetros andados e na manhã seguinte, a saída foi do assentamento em direção a Terenos, onde a dupla andou 24 quilômetros até 4h30 da tarde. O trecho final saiu de uma fazenda da região de Terenos e 18 quilômetros depois, eles chegaram à cidade, onde o ponto final é o Santuário.
O caminho requer, primeiramente disponibilidade e vontade. "Não é uma estrada, o caminho é uma coisa que nasce dentro de você, enquanto você está peregrinando", explica Nilson. Desprendimento também precisa estar na bagagem, junto com duas mudas de roupa, chinelos, primeiro socorros e dependendo das instalações, barraca e saco de dormir.
Relatos - E como Lado B ainda não embarcou nessa, pedimos para quem fez, compartilhar em primeira pessoa, o que foi. A dupla de Nil foi o diretor de teatro, Fernandes F., de 49 anos que está em um relacionamento sério com o trekking desde janeiro de 2016, quando seus pés subiram a Serra de Maracaju e não quiseram mais parar. Vindo de uma infância rural, no alto dos 40 anos, Fernandes sente como se estivesse voltando ao seu "teko-há", talvez por partilhar da teoria de que o homem só se encontra junto à natureza.
"Iniciar os 60 km do Caminho Rural de Santo Antônio numa manhã de quinta-feira, às 08h, exigiu muito de mim.... Deixei de lado um projeto de doutorado, os almoços com os filhos, alguns e-mails a serem respondidos e até mesmo algumas contas a serem pagas... Mas lá estava eu e Nilson Young em busca de um sonho comum... Novamente encontrei mangueiras e desta vez carregadas de frutos. Não resisti. Nossas mochilas pesavam muito, especialmente por conta de equipamentos e alimentação... Alças não ajustadas corretamente trouxeram dores aos meus ombros... Uma pausa prum almoço caseiro e uma hora de descanso (sob mangueiras!!)... Às 13h retomamos a jornada, sol escaldante, poeira, mas só havia um caminho: o de ida!
Casinhas, quintais, placas charmosas e muitas pedras... Uma metáfora da vida. No final do dia, quando minha mochila pesava e machucava como uma cruz, chegamos a um bar numa encruzilhada... O bar estava fechado! Minha tubaína era apenas uma miragem... Ninguém a vista, mas resolvemos aguardar os moradores da casa ao fundo... Meus pés não aguentavam mais.
Nuvens escuras se formaram no céu, vento forte, mas nada... E então ele chegou com sua camionete: Seu José, popularmente conhecido como Ceará, estacionou sua camionete, nos sentimos na obrigação de explicar que éramos gente do bem... Olhar desconfiado, mas meia hora depois éramos como amigos de longa data... Fomos acolhidos como reis... E tanto carinho e tanto cuidado me constrangeram...
Um jantar feito pela sua esposa me fez lamber os dedos. Há tanto tempo desejava aquele cuscuz!! Tantas histórias trocadas, tantos dramas, tantos amores chorados... Inclusive um luto eterno... Fomos dormir muito tarde e minha barraca permaneceu na mochila, pois me arrumaram uma cama e um ventilador... Não havia como recusar...
Um café da manhã com pães caseiros feitos na madrugada pela Dona Josi e prosseguimos... As casinhas deram lugar a pastos enormes, plantações de soja. Meus tênis rasgaram-se e tive que apelar para uma silver tape. Meus pés estavam calejados, bolhas, assaduras nas pernas, mas mantive silêncio... Não era momento para reclamar... O momento era para olhar em frente e... Prosseguir...
Um novo almoço caseiro e um descanso, uma soneca ou deveria dizer um desmaio de 40 minutos? Pegamos a estrada que alguns quilômetros depois transformou-se num caminho estreito e apenas subida, subida... A vista era linda... Eu e Nil revezávamos à frente do caminho.... Mas em todo o tempo era ele que conhecia todos os caminhos, especialmente os do bem...
Nuvens carregadas no céu, corpo no limite e o caminho ainda mais estreito... Uma casinha verde nos pareceu ser um abrigo seguro. Dona Damiana e Seu Ayrton. Novamente a desconfiança, novamente as perguntas, mas novamente o lar, a família... Mesmo que à luz de velas... Desta vez peixe frito e abobrinha... Nada de menu repetido! Novas histórias, novas dores e novas cores...
Manhã do terceiro dia, biblicamente o dia da ressurreição! Descobri que meus tênis já não serviam para mais nada, mas não os abandonei. Apenas aumentei o reforço e os bandaids. Um café misturado com banha de Sucuri trouxe vida aquilo que estava morto em mim e após cinco bolinhos de chuva, prosseguimos...
Essas refeições caseiras tinha seu ônus... Nossas mochilas nunca diminuíam seu peso!!! Eu era agora um peregrino que mancava, mas o companheirismo, a fé, o sonho e a banha de sucuri, tudo me manteve firme e e até assoviei algumas canções do Padre Zezinho...
Descemos... Subimos.., Bati palmas em uma casinha pra pedir águia gelada e quem trouxe foi Alexandre, um garoto de 15 anos, terminando o Ensino Médio... Perguntei se já tinha profissão escolhida e respondeu sem titubear: ator!
E então avistamos Terenos... Adentramos à cidade e caminhamos até a Igreja de Santo Antônio, que tem 56 anos e será demolida porque foi construída sem colunas... Nessas horas, todo e qualquer acontecimento soa como um ensinamento, um alerta.
Despedi-me dos meus tênis e agora o figurino do peregrino estava completo: chinelos e meias... Transeuntes me olhavam... Não sei o que pensara, mas nada disso importava agora..
O que importava agora é que havíamos conseguido...
A amizade fortalecida e o corpo dolorido....
Mas e a alma? Revigorada... Rejuvenescida...!!
Pronto para concluir meu projeto de doutorado, animado para cozinhar pros filhos e amigos.. Planos de novos espetáculos... e juntando as moedas para comprar um novo tênis para subir o Monte Roraima!!!" Fernandes F., 49 anos.
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