Passado de geração em geração, biscoito de pinga leva no sabor as lições de avó
Natal não existia se não houvesse o biscoito de pinga da avó, Maria Ostapenko, na mesa. A receita aprendida com a mãe foi repassada para as cinco filhas e sete netas, todas mulheres fortes que carregam no sobrenome e no sabor do bolinho, as lições da matriarca. "Receitas de família" é um espaço do Lado B para ser preenchido com as histórias que existem por trás de cada prato, seus ingredientes, modo de fazer e o principal: os sentimentos que o paladar desperta.
"O biscoito é uma receita imutável. Passou da minha bisa para a minha avó, que passou para a minha mãe e eu aprendi a fazer. É muito importante para a gente, ele lembra a minha avó e mesmo depois de ela falecer, a gente ainda sente o amor dela em cada biscoito", descreve a jornalista Ana Paula Ostapenko, de 34 anos, primeira neta de Maria.
Tem três meses que dona Maria se despediu das filhas e netas. Aos 76 anos, por complicações de saúde depois de dois tipos de câncer. De personalidade extremamente forte, dona Maria, talvez pela idade, não tinha papas na língua não. Falava o que sentia e pensava sem titubear. No batente, trabalhou com lavoura a vida toda, de descendência romena, também sofreu machismo dentro de casa pelo pai, que dizia que mulher não devia ler e nem escrever. Em São Paulo, se casou e quando as fronteiras para o então Mato Grosso se abriram, veio morar em Itaporã.
“Se ela tivesse tido uma oportunidade, creio que seria economista. Ela tinha o tino para números, era fantástico. Fazia contas de cabeça”, palpita a neta. Depois de adulta, é que a vó Maria foi aprender a ler. Em Dourados, levava do trabalho, alguns jornais para que Ana Paula lesse as notícias para ela. “Ela foi uma pessoa que me ensinou a ler, que queria que eu fosse uma boa leitora”, lembra a jornalista.
Ana Paula foi aprender a fazer o biscoito quando chegou aos 20 anos e a saúde da avó já apresentava problemas. “Aí comecei a ajudar, era muito bolinho pra fazer e ela me chamava: vem cá Paula, me ajuda, você vai aprender e agora vai me ajudar a fazer’”. A neta lembra das palavras como se fosse hoje. “Aí eu sentava com ela e enrolava os bolinhos”, completa.
A receita é toda proporcional. Para cada 1 quilo de banha de porco, trigo e açúcar, 1 litro de cachaça. “Aí junta e amassa até desgrudar da mão. Aí você pode enrolar”, ensina a neta. Os biscoitinhos eram feitos em forma de gota, para então serem assados e antes de dourar, ganham uma mão de água e açúcar por cima. “Por isso que ele fica fofinho”, observa Ana.
No domingo que passou, ela e a mãe, Vanda Ostapenko, se reuniram em volta da receita de Maria. E nem precisa citar que a emoção correu a face das duas. “Foi um chororô só. Quando come, sinto amor, quando a gente faz, saudade”, resume Ana.
Para a neta, o biscoito é o legado da avó. A última vez em que comeu o original, da matriarca mesmo, foi ano passado, quando uma tia veio de Dourados a Campo Grande.
“Acho que se esse biscoito não for passado pra frente, é como se a memória dela não fosse, sabe? E eu quero carregar para sempre. É o legado onde ela deixou todo amor que tinha pela família. Todo mundo que come, sente a presença dela”, resume.