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A desconfiança em relação à urna eletrônica

Sergio Simoni Junior (*) | 01/09/2021 13:30

Por que devemos confiar na ocupação de cargos políticos no Brasil a partir da apuração de números digitados em uma máquina eletrônica? Outros mecanismos de escolha de representantes não seriam mais transparentes, limpos e idôneos?

A democracia é uma das principais invenções da história da humanidade, mas seu significado e sua prática assumiram feições muito diferentes em épocas e lugares diversos. Na Atenas antiga, tida como o berço da democracia – ainda que constantemente lembrada por adotar o que hoje podemos chamar de democracia direta -, os cargos de governo eram preenchidos por meio de sorteio entre os cidadãos. Como mostra Bernard Manin no livro Os princípios do Governo Representativo (que conta com tradução para o português de apenas alguns capítulos, como As metamorfoses do governo representativo e O princípio da distinção), quando a democracia moderna começou a ser implementada, o sorteio foi preterido em prol da eleição como mecanismo de escolha.

Se hoje nos parece estranha e descabida a realização de sorteio para escolher nossos representantes, uma rápida contextualização histórica mostra que a forma de realizar eleições também variou muito, assumindo por vezes características que muitos tratariam como objetáveis.

Durante a Primeira República brasileira, 1889-1930, o sistema de regras do alistamento e de realização do processo eleitoral facilitava o controle do voto pelas forças políticas locais. Vitor Nunes Leal, em Coronelismo, Enxada e Voto, assim caracterizou o período: “Inventavam-se nomes, eram ressuscitados os mortos e os ausentes compareciam; na feitura das atas, a pena todo-poderosa dos mesários realizava milagres portentosos”. Na verdade, até 1955 sequer havia cédula oficial para o(a) eleitor(a) manifestar suas preferências nas eleições presidenciais brasileiras.

Mas se engana quem acha que isso é um retrato do nosso atraso político. Os Estados Unidos têm um sistema de votação extremamente confuso. Antes mesmo dos estarrecedores episódios de invasão do Capitólio em 2021, após a contestação dos resultados eleitorais por parte do presidente derrotado Donald Trump (Republicano), a eleição presidencial de 2000 foi um marco do deficiente sistema dos EUA. Além de demorar semanas para se proclamar o vencedor, existem evidências de que George W. Bush (Republicano) – que ganhou no Colégio Eleitoral, mas perdeu no voto popular – foi beneficiado pelo formato da cédula eleitoral utilizado em um condado específico na Flórida, conhecido como “cédula borboleta”, que levou eleitores do candidato Democrata a se equivocarem na expressão da sua preferência eleitoral.

Nos últimos tempos, o Brasil foi tomado pelo debate sobre a implementação do voto impresso. Foi como se, de repente, toda a sorte do nosso país passasse a depender da reforma do sistema de coleta e apuração dos votos. Fomos alertados pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de que uma grande conspiração estaria sendo tramada nos tribunais com vistas ao retorno, por via eleitoral (fraudada), de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e, com isso, nossa liberdade estaria em risco.

É bem verdade que essa pauta já foi levantada nos últimos anos por outras forças políticas. Após a derrota no segundo turno de 2014 para o PT, o PSDB entrou com uma ação no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pedindo auditoria nas urnas, a partir de rumores encontrados nas “redes sociais”. Em 2015, após o Congresso derrubar um veto da então presidente Dilma Rousseff (PT) a um dispositivo que instituía voto impresso, o deputado Rodrigo Maia (DEM) declarou que a decisão era uma “vitória da sociedade”.

Bolsonaro e seus aliados defendem a tese de que as urnas eletrônicas são fraudadas (ou ao menos passível de assim o serem) há anos. A deputada Bia Kicis (PSL/DF) apresentou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 135/2019, dispondo sobre a adoção do voto impresso, em setembro de 2019, quando não se completava nem um ano da eleição, por meio digital, de seu primeiro mandato como parlamentar. Nesse mesmo ano, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara aprovou o relatório favorável do deputado Paulo Eduardo Martins (PSC), com voto a favor inclusive dos representantes do PT.

Afinal, temos motivos para desconfiar das urnas eletrônicas?

Apurações as mais diversas atestam a alta integridade do nosso sistema de votação. Na eleição presidencial de 2018, representantes dos partidos concorrentes acompanharam a totalização de votos no TSE. Após a proclamação dos resultados do segundo turno, um dos indicados pelo PSL, então partido de Bolsonaro, declarou que a iniciativa foi “muito importante para garantir a lisura das eleições”.

Por certo, nenhum sistema é ideal e está totalmente isento de fraudes, mas existem procedimentos institucionais melhores e piores.

Para além da dificuldade de fraude, pesquisas apontam que a urna eletrônica diminuiu a proporção de votos inválidos, trazendo de fato à cidadania política à grande parte do eleitorado de baixa escolaridade que tinha dificuldades de expressar sua preferência na cédula em papel.

A PEC 135/2019 foi derrotada tanto na Comissão Especial quanto no Plenário da Câmara, mas os argumentos políticos para contestar potenciais resultados estão dados. As palavras usadas pelo Presidente de que o “povo não confia nas urnas” e de que em 2022 corremos o risco de ter “problemas”, além de soarem como uma ameaça, são falaciosas, pois essa percepção foi construída por parte da elite política. Trata-se de uma profecia que se autorrealiza.

É natural na democracia a busca por reformas institucionais. Todos os países debatem propostas de alterações nos seus sistemas eleitorais. É da essência do regime democrático, no entanto, o respeito às regras do jogo e ao resultado das urnas. Indícios fracos ou inexistentes não podem embasar suspeição de eleições. Em um Estado Democrático de Direito, o ônus da prova está para o acusador. Nos últimos tempos, diversas elites políticas no Brasil trataram a democracia como ré que tem que provar sua inocência.

(*) Sergio Simoni Junior é professor do Departamento de Ciência Política da UFRGS.

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