A educação ao redor do mundo e um mundo novo a ser construído
Originalmente intitulado Reimagining our futures together: a new social contract for education e apresentando-se como um Relatório da Comissão Internacional sobre os Futuros da Educação, foi publicado em 2021 um importante documento pela Organização das Nações Unidas pela Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco. Disponível pela internet em várias línguas, salvo engano, o texto ainda não foi vertido para o português. Entretanto, sua leitura nos parece fundamental nesse momento de (quase) pós-pandemia para todos/as os/as educadores/as que militam em prol de uma escola de qualidade. Elaborado por uma comissão de 18 especialistas dos mais variados países dos cinco continentes, dentre os quais destacam-se os nomes de António Nóvoa e Cristóvão Buarque, o texto acena para algumas diretrizes necessárias para se pensar o futuro dos territórios educativos.
Audrey Azoulay, diretora geral da Unesco, comenta que o documento procura responder as indagações de um tempo que vive a vulnerabilidade perante o presente e a incerteza em face do futuro. Durante a pandemia, um bilhão e meio de estudantes ficaram fora das escolas. A Unesco é um organismo internacional que tem 75 anos e que já lançou, no tocante à educação, inúmeros relatórios, dentre os quais se destacam o de 1972, intitulado Aprender a ser: o mundo da educação hoje e amanhã e o famoso documento da Comissão Delors, de 1996, intitulado Educação: um tesouro a descobrir, o qual elencava quatros pilares para a agenda da educação: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a ser e aprender a viver junto. Já o documento atual, propõe-se como um novo contrato para a educação: “um contrato que visa reconstruir nossas relações uns com os outros, com o planeta e com a tecnologia”. Trata-se de reparar o que o passado traz de inaceitável e de injusto e de preparar os tempos futuros, com criatividade, inteligência e entusiasmo, para a construção de um porvir que seja inclusivo e calcado no respeito aos direitos humanos.
Tal proposta de um novo contrato social para a educação pressupõe a reinvenção do trabalho coletivo, com vistas à criação de futuros solidários e comuns. Para isso, o relatório se coloca a questão: o que deve ser preservado da forma escolar e das práticas educativas? O que deve ser abandonado? E como se poderão reinventar as ações pedagógicas? O relatório é muito direto nesse sentido: o currículo da escola do futuro – um futuro que começa agora – deve contemplar aprendizagens ecológicas, interculturais e interdisciplinares, auxiliando os estudantes a acessar o conhecimento, mediante a reflexão, a pesquisa, a criação de saberes e de novas práticas educativas. Isso implica promover a autonomia dos/das professores/as. Reconhece o documento que o mundo digital favorece um acesso aberto ao conhecimento e isso precisa ser mobilizado de maneira crítica e criativa. As novas tecnologias do mundo on line trouxeram um conjunto inenarrável de informações. Será preciso aprender a buscar criteriosamente tais elementos para transformar a informação em saber.
A despeito desse cenário promissor, há no mundo um contingente muito grande de crianças e de jovens que não aprendem, que abandonam a escola ou que, nela, continuam sendo privados de uma educação de qualidade. Há, nesse sentido, no interior das próprias instituições, práticas de discriminação, fundadas na raça, no gênero, na língua e na cultura de origem dos/as estudantes. A escola, ancorada na reprodução de práticas discriminatórias, ajuda a fortalecer a exclusão. Para reverter esse quadro o relatório da Unesco aponta para a urgência de um novo contrato social para a educação; contrato esse fundado sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. O documento apresenta a Declaração como uma bússola para imaginar novos futuros da educação, a partir fundamentalmente de um consenso sobre aquilo que se compreende como o direito à educação.
Um novo pacto social voltado para a causa da educação requererá, antes de tudo, o direito ao acesso a uma educação de qualidade; e, portanto, a inclusão de populações hoje marginalizadas. Esse é um processo que já vem acontecendo. O documento demonstra também que, se, em 1970, uma criança em cada quatro não era escolarizada, essa proporção caiu para 10% em 2020. Essa evolução mostra-se mais explicitamente no que diz respeito às meninas, posto que elas representavam 2/3 das crianças não escolarizadas em 1990. Hoje a situação é um pouco melhor. Mesmo assim, para cada 100 meninos que não frequentam a escola há 123 meninas privadas do mesmo direito e essa assimetria se acentua no nível do ensino secundário. Tal situação não é melhor no tocante à formação de professores. Teria havido, segundo o relatório da Unesco, uma inquietante regressão na proporção de professores/as qualificados/as para ensinar no ensino primário através do mundo. Em inúmeros países, especialmente na África, a proporção de docentes que possuem as qualificações mínimas passou de 85% em 2000 para 65% em 2020.
Superar as injustiças e insuficiências das situações passadas e mesmo da realidade atual é o grande desafio para uma escola que pretende confrontar as desigualdades e as exclusões. No caso das crianças que deixaram a escola em virtude da pandemia, são milhões as que não voltaram… Há de se repensar, a propósito, o próprio formato da escola: uma escola que, hoje, é menos dirigida para o aprendizado coletivo em equipes do que para a performance individual. O professor age como se fosse o chefe de uma orquestra, mas os músicos tocam sozinhos… Haveria de se pensar, nas práticas escolares, uma ética do cuidado e da reciprocidade: uma aprendizagem coletiva e participativa, que seja fundada na construção interdisciplinar dos temas e dos problemas. Toda a pedagogia envolve relações humanas e sociais. Isso supõe uma dimensão ética no território pedagógico: uma ética construída a partir do triângulo educativo (professor/a, conhecimento, aluno/a). Tal ética permitiria a construção de uma pedagogia solidária, pautada em diferentes registros epistemológicos, na diversidade cultural que caracteriza e legitima a produção e interação de distintos produtos culturais e dinâmicas de conhecimento. O documento deixa claro que não se trata apenas de tolerar a diferença. Trata-se de trabalhar junto: junto a sociedades multiculturais e multiétnicas, em direção a uma cidadania intercultural. A diversidade é tida, pois, como um valor, mas um valor que se coaduna com a busca de um solo comum que a ancore. São as diferenças que nos constituem, mas é a partilha que nos une uns aos outros. Tal partilha, para ocorrer, requer práticas de empatia, de solidariedade e de justiça.
O relatório da Unesco destaca finalmente a relevância, em nossa contemporaneidade, de uma nova relação entre a educação e o conhecimento. Haveria necessidade de uma outra acepção de currículo, que não se compreenda mais apenas como um simples feixe de matérias ensinadas na escola, para se inserir em um amplo quadro de saberes e de competências que devem sistematicamente acompanhar o processo de ensino e aprendizado. Nos termos do texto, trata-se de “aquisição de conhecimentos fazendo parte do patrimônio comum da Humanidade e a criação coletiva de novos conhecimentos e de novos mundos”. Algumas coisas que não são ensinadas precisam ser aprendidas. Outras coisas que são ensinadas deveriam ser desaprendidas. É disso que se trata. Será necessário compor uma teia de conhecimentos significativos, perante um repertório que será escolhido e reinventado de tempos em tempos a partir das prioridades de cada tempo, de cada época, de cada região. O importante é que todos os saberes ensinados possam integrar um bem comum partilhado por todos. Isso pressupõe o reconhecimento de uma diversidade cultural e epistêmica. Mas isso requer também um território compartilhado, no qual as pessoas possam se comunicar e se compreender umas às outras. Esse desafio entre um humanismo universalista e o apelo à diversidade cultural é o que constitui a fertilidade, mas também a complexidade desse documento, cuja referência deverá ser contemplada pelos planos educativos de inúmeros países ao redor do mundo.
(*) Carlota Boto é professora da Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo).