A instrumentalização do Supremo Tribunal Federal
Desde que tomou posse, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que aproveitaria a primeira vaga a ser aberta no Supremo Tribunal Federal para indicar um ministro “terrivelmente evangélico”. Esquecendo-se de que o Estado é laico, relevando o fato de que a sociedade brasileira é plural e desconhecendo as funções institucionais de uma corte suprema, esse foi o expediente a que recorreu para dizer que não mediria esforços para torná-la hegemonicamente conservadora.
Pela Constituição, a escolha de um ministro do STF é feita pelo presidente da República e o nome escolhido é enviado ao Senado, para ser sabatinado. Após a sabatina, a Comissão de Constituição e Justiça decide se o indicado preenche os requisitos de reputação ilibada e notável saber jurídico. Se for aprovado, a indicação será levada a votação em plenário, para ser confirmada.
Esse modelo de indicação é semelhante ao adotado nos Estados Unidos, cujas instituições serviram de inspiração para a construção do Estado brasileiro após a proclamação da República. Desde a Constituição de 1891, o modelo de escolha dos ministros do STF sofreu poucas alterações. Como nos dois países a atuação de suas cortes supremas implica uma convergência entre direito positivo e política, ambos tomaram o cuidado de evitar que elas fossem ocupadas só por juízes. Nos dois países, o objetivo é assegurar o acesso à cúpula da Justiça de juristas respeitados e advogados consagrados. É um modo de neutralizar o viés corporativo da magistratura, por um lado, e de dotar uma corte suprema de uma visão capaz de respeitar as forças sociais majoritárias e as minorias sociais.
Ainda que nos Estados Unidos o mandato dos ministros seja vitalício, enquanto no Brasil ele expira aos 75 anos, a maior diferença entre os dois modelos não é de caráter formal, mas substantivo. Nos Estados Unidos, as sabatinas dos indicados para a Suprema Corte são rigorosas e duram dias. Os indicados têm de demonstrar não só conhecimento de direito, de jurisprudência e de doutrinas jurídicas, mas, igualmente, sensibilidade social. Já no Brasil as sabatinas tendem a ser meramente protocolares. Duram algumas horas e – com raras exceções – os senadores limitam-se a fazer elogios e indagações banais, quando não previamente acertadas.
No Brasil, desde o advento da Constituição de 1891 apenas cinco indicações foram rejeitadas – todas no governo Floriano Peixoto. Nos Estados Unidos, em mais de dois séculos o Senado já rejeitou 12 indicações. E em 11 vezes a Casa Branca teve de retirar os nomes indicados para evitar que fossem rejeitados. Há casos em que os próprios indicados declinaram da indicação, quando perceberam que seriam rejeitados, e em que os senadores impediram a votação, fazendo discursos intermináveis durante as sabatinas. Os últimos casos merecem destaque. Em 1987, Ronald Reagan indicou Douglas Ginsburg, que foi rejeitado após se saber que fumou maconha quando adulto. E, em 2005, George W. Bush indicou uma assessora pessoal, Harriet Miers. Considerada despreparada até pelos senadores governistas, só não sofreu uma rejeição humilhante porque teve o bom senso de renunciar à indicação antes do início da votação.
Isso mostra que a experiência americana parece vir dando certo. Ao serem sabatinados, os indicados têm de mostrar saber jurídico e sensibilidade social. E a história revela que, independentemente de serem conservadores ou progressistas, os ministros da Suprema Corte costumam levar em conta o impacto de suas decisões numa sociedade complexa e plural e não os interesses dos governantes que os escolheram. Como vários indicados já foram rejeitados, isso mostra que, se levadas a sério, sabatinas conseguem barrar a entrada na cúpula da Justiça de indicados sem biografia e sem sensibilidade social.
Diante das tensões institucionais que o Brasil enfrenta, era de se esperar que o Senado brasileiro se inspirasse no Senado americano e passasse a ser rigoroso nas sabatinas. Entre outros motivos, porque os nomes aventados pelo Planalto para a vaga aberta pela aposentadoria do ministro Celso de Mello eram conservadores, mas, em sua maioria, careciam de notável saber jurídico. Muitos eram bacharéis formados em cursos de terceira linha, sem maior experiência jurídica e notório saber.
Pautada por Bolsonaro, a cada novo nome que surgia a imprensa o classificava como “garantista” ou “consequencialista”, como conservador ou progressista. Contudo, Bolsonaro surpreendeu, escolhendo um juiz federal pouco conhecido, cujo currículo enumerava cursos que não fez e classificava como plágio uma tese que escreveu. Além disso, ingressou na magistratura não por concurso, mas pela via corporativa do quinto constitucional, representando a classe dos advogados.
Foi uma surpresa. Sua indicação deixou claro que, após aliar-se ao Centrão, Bolsonaro viu que o Senado não rejeitaria uma indicação política. Relegou, então, o tema dos valores. Abandonou a ideia de optar por um conservador. E preferiu indicar um nome que, pelo noticiário da imprensa, aceitou sujeitar-se a sentar com ele em fins de semana “para tomar tubaína”. Ficou claro assim que, em vez de um conservador, como vinha anunciando desde sua ascensão ao Planalto, o presidente optou por quem o blindasse juridicamente, juntamente com um dos filhos que está acionado no campo penal.
O episódio descortinou um Senado, além de ser incapaz de cumprir suas funções institucionais, abriu mão de suas prerrogativas e da autoridade moral. Estimulado pelo presidente da República, o embate entre progressismo e conservadorismo no STF não passou assim de uma cortina de fumaça para ocultar a instrumentalização da corte. Feito o estrago no plano político, jurídico e institucional, não há como não ser pessimista. De que modo o STF pode zelar pela Constituição com o ingresso de um ministro sem lastro jurídico e que saiu da obscuridade para o proscênio com a condição de aceitar “tomar tubaína” com quem o indicou? O que esperar de um ministro que, quando pressionado, talvez não hesite na hora em que tiver de escolher entre os interesses obscurantistas de seu padrinho e os interesses da sociedade?
(*) José Eduardo Campos de Oliveira Faria é professor titular de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP