A produção animal nos bastidores: muito além de carne e leite
Esta semana foi publicado um levantamento feito pela World Animal Protection, que identificou quais as empresas estão priorizando o bem-estar animais dentro das produções. A organização faz uma estratificação por níveis, classificando as empresas que mais possuem políticas com maior aderência ao bem-estar animal até aquelas que não estão sensibilizadas. O levantamento foi realizado em âmbito mundial, assim, muitas empresas brasileiras (pelo número muito grande de organizações) não foram contabilizadas. No entanto, alguns grandes nomes do Brasil já figuram no relatório apresentado.
Ações como essa são reflexos de uma nova visão do consumidor. Indiscutivelmente, o setor agropecuário sofreu diversas mudanças, notadamente após o final da II Guerra Mundial. A produção de alimentos e fibras demonstrou um incremento grande, pelas novas tecnologias empregadas, mecanização, utilização de insumos químicos, da especialização e algumas políticas para favorecer a maximização da produção. Inegavelmente, apensar de uma distribuição não justa, hoje há muito mais disponível e mais barato alimentos do que há algumas décadas.
Para o consumidor, eminentemente das cidades, sanadas as necessidades primárias de volume de produção, outros requisitos estão sendo solicitados, ou mesmo exigidos, como premissa de comercialização. Afinal, o acesso aos alimentos, principalmente, as proteínas de origem animal atingiram grande parte da população dos países desenvolvidos e têm chegado à mesa, com frequência, de muitos consumidores de países emergentes, há espaço para criar novas demandas e exigências.
Neste cenário, as práticas utilizadas no campo estão sendo questionadas pelos consumidores. Não basta apenas ser competitivo, deve-se produzir com qualidade, mas isto vai muito além de um alimento saudável e palatável, requisitos, anteriormente, satisfatórios para ser considerado adequado aos anseios do consumidor. Entre as novas exigências dos consumidores, pode-se destacar o atendimento à sustentabilidade da produção, que permeiam as práticas que atendam às necessidades ambientais, sociais e, na pecuária, ao bem-estar animal. Assim, os problemas ocasionados pela intensificação da produção estão sendo questionados.
A preocupação do consumidor em relação ao bem-estar animal tem feito com que muitos optem por uma alimentação sem proteína animal. Sendo assim, cresceu, substancialmente, a quantidade de pessoas que adotam alimentação vegetariana, vegana etc. No entanto, mesmo os indivíduos que buscam não se alimentar diretamente de proteína de origem animal, consomem produtos da pecuária de várias outras formas.
Há diversos medicamentos sintetizados a partir da origem animal. Utilizado como anticoagulante, para cirurgias ou pacientes com risco de AVC (acidente vascular cerebral) e também em tratamentos estéticos para combater a gordura localizada, a Hialuronidase tem o uso muito difundido. Ela é extraída a partir de testículos bovinos. Também com função anticoagulante há a heparina, de origem animal, é extraída do fígado, pulmões e intestino de bovinos e suínos. A heparina é utilizada para a fluidificação do sangue (reduzir a viscosidade), retardar a coagulação (inibe a conversão da pró-trombina em trombina), utilizada em exames de sangue, em procedimentos cirúrgicos e em transplante de órgãos.
Outro medicamento importantíssimo, pois sua síntese permitiu a sobrevivência de bebês prematuros, o surfactante, também tem sua molécula extraída de matéria prima animal. A lista de medicamentos, e diversos tipos de produtos, originados na pecuária é muito grande, passa por cosméticos à pinceis. Suínos, por exemplo, são usados como manequim para tatuadores (bem anestesiados, claro), pois sua pele tem muita semelhança com a humana.
Assim, mais que simplesmente achar que não consumir carne, leite, ovos, peixe etc., estará contribuindo com a diminuição do sofrimento animal, a sociedade deve entender que preconizar e exigir as boas práticas agropecuárias deveria ser a bandeira a ser hasteada.
A sensação de “estou fazendo minha parte” por não consumir, na forma de alimento ou produtos da pecuária, além de criar uma falsa ilusão, não dá o devido valor que deveria à criação animal. Quanto mais pessoas se conscientizarem que eles são dependentes dos animais, mas irão buscar preservá-los e, também, irão adquirir alimentos que tenham sido produzidos sob os critérios de sustentabilidade que também respeitam o bem-estar animal.
(*) Roberta Züge é membro do CCAS (Conselho Científico Agro Sustentável); vice-presidente do Sindivet (Sindicato dos Médicos Veterinários do Paraná); médica veterinária doutora pela FMVZ/USP (Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo; sócia da Ceres Qualidade.
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