A Rena natalina não é mais a mesma
A pandemia da Covid-19 não acabou. Contudo, considerando os atuais dados epidemiológicos, ela não é mais a mesma. Conforme sempre anunciado, a vacinação nos permitiu voltar para as ruas sem máscaras e sem medo da aproximação social. Em tempos natalinos, isso faz toda a diferença. Mais uma vez, aqui em Campo Grande, as noites na Rua 14 de Julho estão lotadas: crianças, idosos, casais, pets, jovens e turistas. Não necessariamente essa multidão está envolvida com as compras, como já reclamam alguns empresários. A empolgação é com o clima festivo da principal rua do comércio da capital.
O frisson maior é com a Parada Natalina, inegavelmente um sucesso. Sem muita criatividade ou representações sul-mato-grossenses, o que se vê por aqui é uma receita quase universal: personagens, animais, enfeites e brinquedos carregados de representações nórdicas e americanas. Imagens para serem fotografadas, filmadas e aplaudidas em tempos como esse. Até espuma imitando neve cai do céu enquanto a parada passa. Tudo feito com muito capricho e colocado em prática por trabalhadores/as da cultura, que sofreram tanto com as restrições pandêmicas. Esses dedicados trabalhadores/as, inegavelmente, cativam o público.
No ano passado um dos personagens fez mais sucesso do que o Papai Noel: a Rena. Sempre vindo à frente da banda municipal, os passinhos dela viralizaram nas redes sociais a ponto de a identidade do dançarino por dentro da fantasia inflável gigante ter sido revelada em matéria específica desse jornal. A Rena, no entanto, não parecia ter identidade de gênero definida, ou, pelo menos, isso não tinha a menor importância para o público. Ela trazia um cachecol vermelho no pescoço, que é uma das cores tidas como “neutras” ou “unissex” em nossa cultural binária de gênero. Essa peça, usada por nós humanos, deu certa marca de humanidade ao bicho.
O sucesso da Rena aqui no Centro-Oeste é tão grande que, no ano passado e nesse ano, a cidade pode conferir a presença do prefeito e da prefeita junto dela quando da realização da Parada Natalina na Cidade do Natal – local longe do centro onde também se comemora publicamente as festividades natalinas, com shows, muita decoração e comidas típicas. O entretenimento, de modo geral, é politicamente importante há séculos. Mas não se trata de repetir a máxima “pão e circo” para produzir uma crítica já bastante difundida. Afinal, seria injusto achar que quem vai se divertir com a Parada Natalina na Rua 14 perdeu ou não tem criticidade política.
O que proponho é seguir pensando o quanto atualmente continua inegável a dimensão pedagógica e política de eventos populares, ainda mais em contextos de desigualdade econômica e, portanto, de restritos acessos a espaços artístico-culturais em cidades como a nossa. Sobre isso, muito há ainda que se discutir. Aqui, chamo a atenção para algo em específico: os aprendizados das diferenças na Parada Natalia da 14 de Julho, em especial as de gênero, a partir do sucesso da performance da Rena inflável gigante.
De modo geral, estamos performando gênero do começo ao fim da Parada Natalina, seja pela forma como colocamos mais brilho nas fantasias das mulheres e menos brilho nas fantasias dos homens, na divisão por sexo quando da escolha de um instrumento mais pesado ou um mais leve entre os músicos da banda ou, ainda, quando se avista entre os personagens uma típica bailarina clássica e não um bailarino clássico. Mas, considerando o sucesso da Rena, surpreendeu-me que, diferente de 2021, o gênero dela esse ano foi muito bem demarcado: encontraram um par romântico binário para ela.
Agora temos “o senhor Rena” e “a senhora Rena” para delírio do grande público. O cachecol deu espaço para uma gravata borboleta em uma e um laço na cabeça da outra, ambos vermelhos. Não há mais cachecol. Além disso, cílios alongados foram implantados nos olhos daquela que tem sido lida como a Rena fêmea. No mais, tudo igual entre os dois personagens. Os memes já nos alertam do que está por vir: no ano que vem teremos filhotinhos de Rena inflável na 14. O gênero binário transformou as Renas em heterossexuais. Logo elas, comumente associadas em outros contextos à homossexualidade.
Os aprendizados de gênero em meio a artefatos culturais, antes não necessariamente generificados, como é o caso da Rena gigante inflável da Parada Natalina de 2021, dizem muito como aprendemos a ser binários (machoXfêmea/masculinoXfeminino) pelo entretenimento. Em um contexto cultural em que a linguagem neutra foi proibida pelo governador do estado; em que a Assembleia Legislativa tentou criminalizar o trabalho docente daqueles profissionais que ensinam sobre teoria de gênero; em que vemos tantas vítimas de feminicídio e, ao mesmo tempo, em que temos poucas vereadoras e deputadas em nossos espaços de deliberação política, pensar sobre generificação das coisas e os seus significados torna-se urgente.
Não se trata de defender identitariamente a inclusão de uma Rena neutra ou não binária, antes, pensar o quanto precisamos e produzimos gênero. E, exatamente por isso, poderíamos pensar em novas relações e políticas das diferenças quando das ocupações dos espaços públicos em experiências festivas. Em uma das apresentações, o laço da cabeça da “senhora Rena” caiu, despregou. Gênero é isso, nós é que colocamos lá. Não é um dado da natureza, é produto de aprendizagem e convenções sociais. Portanto, podemos rever os processos produtores de desigualdades e hierarquias. Não se trata de ser contra a festa, mas de um convite a pensarmos a importância das diferenças que nos atravessam, constituem e enriquecem. Quem sabe no ano que vem os filhotes de renas venham sem laços ou gravatas borboletas?
(*) Tiago Duque – Doutor em Ciências Sociais. Professor na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).