Afinal de contas, quais seriam as “caras” do Brasil de hoje?
Quais seriam as caras do Brasil de hoje? Como sintetizar essas nossas contradições no século XXI? Como se (re)constrói uma identidade nacional? Como um aglomerado de gente se transforma em um povo? Denise Scheyerl e Sávio Siqueira, linguistas aplicados da Universidade Federal da Bahia (UFBA), escreveram um artigo, que eu considero seminal, intitulado O Brasil pelo olhar do outro: representações de estrangeiros sobre os brasileiros de hoje, publicado pela Revista Trabalhos em Linguística Aplicada, da UNICAMP, em 2008. Os autores partem de imagens (re)construídas desde o descobrimento do Brasil, confrontam essas imagens às impressões e visões de estrangeiros (re)construídas contemporaneamente, antes de suas vivências no país, e pontuam de que modo essas imagens se transformaram e/ou se reforçaram após o contato com a cultura brasileira e, por último, complementam esse quadro com questões pertinentes à (re)constituição da identidade de um povo.
Passados 15 (quinze) anos da publicação desse artigo seminal, eu me pergunto: quais são as representações de estrangeiros sobre os brasileiros de hoje? O Brasil e os brasileiros vistos, principalmente por estrangeiros/as, em especial, por estadunidenses, africanos e europeus, é o que será retratado neste texto. A meu ver, esta tarefa é bem complexa e poderia ser desenvolvida em dois planos, conforme enfatizado por Denise Scheyerl e Sávio Siqueira. No plano histórico, pela reconstituição de depoimentos e impressões nacionais ou estrangeiras que se alternam e ainda perduram desde o nosso descobrimento. E no antropológico, porque a análise das representações que os povos têm sobre si e sobre outras culturas possibilitam a reflexão sobre confrontos étnicos e entre modos diferentes de viver; ajudam, enfim, a desenvolver uma maior compreensão sobre choques culturais.
Muito se tem tematizado em pesquisas e polemizado na mídia televisa acerca de representações da identidade do brasileiro. O artigo de Denise e Sávio ancora-se em uma perspectiva transdisciplinar, dialogando com vários campos do conhecimento, como a Antropologia, a Sociologia, a História e os Estudos Culturais, tendo como fio condutor a interface identidade e linguagem. Nesse sentido, os autores buscaram focalizar a discussão do que é ser brasileiro através do olhar do outro e desmistificar concepções estereotipadas, além de mostrarmos como a história dessa identidade vem sendo (re)construída.
Pelo exposto até aqui, enfim, de acordo com as referências tomadas como base, sintetizaram a tipologia do "perfil do povo brasileiro" como se segue, deixando em aberto o século XXI, tal como delineado pelos primeiros registros de estrangeiros:
- Séc. XVI: bárbaro selvagem / bom gentio
- Séc XVII: grosseiro / exótico
- Séc XVIII: taciturno / alegre
- Séc XIX: preguiçoso / vítima dos trópicos
- Séc. XX: malandro / homem cordial
Quanto ao século XXI, a partir de pesquisas realizadas no bojo da Linguística Aplicada, percebem-se diferentes modos de se ser brasileiro e não mais uma única forma de ser brasileiro, formas essas geralmente idealizadas ou mesmo caricatas. Surge uma tendência que esboça novas interpretações mais realistas, enxergando para além da imagem estereotipada os muitos "Brasis". Assim, afinal de contas, quais seriam as caras do Brasil de hoje? Como sintetizar essas nossas contradições no século XXI? Como se constrói uma identidade nacional? Como um aglomerado de gente se transforma em um povo? Em verdade, não é fácil falar com exatidão de um país continental e tão complexo como o Brasil. "São tantos 'Brasis', tão incompletos, e cada pessoa que se engaja em tal tarefa, naturalmente, ancora-se em determinadas perspectivas, que podem ser muito bem recebidas ou simplesmente gerar bastante controvérsia" (Siqueira, 2005).
Seguindo a premissa em princípio provocadora, o jornalista Diogo Mainardi, que não tem talento algum para a conciliação, no seu racionalismo usual, ao abordar a questão da identidade nacional brasileira, ressalta que a nossa literatura é pobre, monotemática e que não possuímos peculiaridade alguma: "somos um país amorfo, desinteressante, sem graça" (Mainardi, 2001, p.151).
Para Stuart Hall (2005), o conceito de identidade é complexo, pouco desenvolvido e mal compreendido na ciência social contemporânea, para ser definitivamente posto à prova. Bem ou mal, temos, sim, nossas peculiaridades, mas peculiaridades que não se manifestam necessariamente em todos os brasileiros. Infelizmente, por uma questão de contingência, ao longo da nossa história, sempre potencializamos (ou deixamos que fossem potencializados) os aspectos que viriam desvelar exatamente os aspectos negativos, como o jeitinho e outros rótulos desagradáveis fundados em estereótipos, como a assunção do povo alegre, festeiro, brincalhão, despreocupado e pouco afeito ao trabalho.
Ora, somos mesmo esse povo alegre e festeiro em todos os quatro cantos do país ou somos nada mais que um bando de macunaímas, um povo sem caráter algum, reis da malandragem que desrespeitam as leis, que enganam a tudo e a todos e só pensam em se dar bem? Embora não possamos negar que essas são marcas com as quais fomos representados na gênese da nossa sociedade e a partir das quais ainda somos vistos, a equação de uma identidade nacional, principalmente na atual "modernidade tardia", como bem salienta Hall (2005), não pode mais ser apontada de maneira tão simplista, uma vez que, para o autor, um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas e isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Essas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados (HALL, op. cit., p. 9).
Assim, corroboramos com Denise Scheyerl e Sávio Siqueira (2008), quando afirmam que “(...) temos, sim, as nossas singularidades, mas elas não se apresentam da forma que muitos as querem enxergar, fixas, monolíticas. Elas estão aí, presentes nas casas, nas ruas, nas relações sociais, nas tensões do dia a dia, nas manifestações populares, na alma de cada um de nós, em cada canto singular desse país continental. Elas apresentam e representam cada pedaço dessa terra chamada Brasil e estão o tempo todo se desfazendo e se refazendo, contestando todas as certezas. Se há nessa polêmica toda uma coisa certa é que existem muitos países dentro de um país, inúmeras identidades brasileiras com múltiplas e sempre provisórias peculiaridades”. E um das “caras” que eu tenho e mantenho do que é ser brasileiro no século XXI é de um povo que precisa saber criticamente mais dos seus deveres/direitos e que tem o dever de manter a chama do “esperançar” como mola propulsora para a sua (re)constituição identitária como cidadão crítico, emancipatória e planetária.
(*) Kleber Aparecido da Silva é professor do Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas e do Programa de Pós-Graduação em Linguística e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade de Brasília
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