Anatomia de uma atualidade científica
Reportagens sobre ciência sempre são compartilhadas nas redes sociais que eu acompanho. Confesso que não as leio com frequência, mas recentemente não resisti a um título que falava sobre a “ressuscitação” de uma enzima, que ampliaria a capacidade de fotossíntese das plantas. Inevitável não ser fisgado por um título desses. A matéria foi publicada na seção de atualidades de um veículo ligado às ciências, bem editado. Como de praxe, o texto é curto, com cerca de 2900 caracteres. A reportagem me pareceu correta, mas não segui adiante, pois algo me incomodou.
Perdoem-me os leitores, mas não darei a referência por questões éticas, embora essa escolha também signifique romper boas práticas, seja de jornalismo ou de divulgação de ciência. Em meu favor, posso dizer que a matéria em questão é apenas ilustrativa de muitas que vejo por aí e, como disse, ela é essencialmente correta e segue os ditames das redações. Vamos então à essência anonimada.
A reportagem traz declarações de um especialista convidado sobre um artigo que pode ser acessado por um link logo na primeira linha da matéria. Em resumo, trata-se de uma pesquisa sobre uma enzima presente em certa família de plantas, entre elas o tomateiro, que no passado seria mais eficiente em promover a fotossíntese. De que passado estamos falando? Algo como há milhares de anos, quando a concentração de gás carbônico na atmosfera era bem mais alta, como temos agora, com o avanço da crise climática. Os autores do estudo descrevem uma “genealogia genética”, comparando partes do DNA das plantas que expressam essa enzima, mapeando diferenças e semelhanças entre elas, até chegarem ao que seria a enzima ancestral, hipoteticamente mais eficiente.
A matéria dá a entender que esse estudo computacional é a “ressureição” anunciada. Aí senti o meu primeiro incomodo, a incompletude. A ressureição mesmo só se daria se o DNA da enzima ancestral fosse produzido em laboratório para daí, a partir dele, editar o código genético de alguma cultura e, uma vez expressada a enzima do passado nessa cultura atual, seria possível verificar se ela é mesmo mais eficiente. Isso é até rapidamente mencionado na reportagem, mas o autor parou por aí.
Restava, então, checar o artigo científico original em inglês, que é extremamente técnico e, portanto, obscuro para o não especialista em Biologia, como é o caso de quem vos escreve. Mesmo assim, insisti em uma espécie de análise de conteúdo que permitiu entender que os pesquisadores, depois de recriar no computador o DNA responsável pela enzima ancestral, produziram-no em laboratório, editaram o material genético de uma cultura de bactérias, junto com outras culturas da mesma bactéria editadas com os DNAs responsáveis pelas enzimas atuais e verificaram que as enzimas expressadas pelos genes ancestrais, agora sim ressuscitados, eram mais eficientes para a fixação do carbono, uma etapa da fotossíntese.
Em resumo, a matéria só vai até a etapa alcunhada de “in sílico”, isto é, simulação por computador, quando, na verdade, o artigo científico vai além, chegando de forma consistente à fase “in vitro”, ou seja, em culturas de micro-organismos em ambiente controlado de laboratório. Mas e a fase “in vivo”, quando poderíamos ter, por exemplo, tomateiros mais eficientes?
Uma frase a mais bastaria para informar o leitor de que a fase “in vitro” já foi explorada (algo tão fascinante quanto a fase realizada somente no computador). Faltou, portanto, uma pergunta para o entrevistado: quanto tempo faltaria para chegar à fase “in vivo”? A passagem do vitro ao vivo é crucial e, normalmente, a mais difícil. Algumas linhas a mais na reportagem e o leitor seria informado que a ciência caminha, mas que também há uma longa estrada até que essa descoberta possa ajudar as “plantas a se adaptarem às mudanças climáticas e aumentar os seus rendimentos”, como diz o subtítulo da reportagem.
Assim, chego ao segundo incomodo (maior do que o primeiro): a involuntária promoção do cientificismo em vez da ciência. Cientificismo é a visão de que as ciências, em particular as chamadas de naturais e seus métodos, são os únicos (ou no mínimo privilegiados) meios para descrever o mundo. Essa visão namora também a ideia de que a ciência promoveria continuamente o progresso. E progresso científico contínuo é uma das muitas noções ingênuas (e perigosas) que caminham entre nós. Para se ter uma ideia de como o conceito de progresso científico é complexo, basta olhar o verbete scientific progress na Stanford Encyclopedia of Philosophy[I]. O cientificismo, de braços dados com o mito do progresso, alimenta a concepção equivocada de que a ciência e a tecnologia podem resolver todos os problemas, como adverte a página de dicas para ensino de ciências da Universidade de Berkeley sobre “concepções errôneas sobre ciência”[II]
Com o cientificismo e o mito do progresso em mente, podemos voltar à matéria que critico, mas que ilustra tantas outras e que na frase final assevera: “Conseguir fazer com que essas plantas tenham maior produtividade em uma atmosfera com mais gás carbônico é uma vantagem que pode nos ajudar a mitigar os efeitos das mudanças climáticas”. Mas os processos ainda necessários para essa rota rumo à segurança alimentar podem não dar certo ou chegarem tarde demais. E, mesmo que tenhamos tomateiros resistentes ao aquecimento global, sua distribuição, para de fato garantir a segurança alimentar, necessita de saberes outros que não os idolatrados pelo cientificismo. Isso sem falar que há outros efeitos para serem mitigados.
Para muitos leitores, incluindo os negacionistas do aquecimento global, a reportagem acalenta o mito de que a ciência só progride e pode resolver todos os problemas e, portanto, não precisamos nos preocupar com as “tais mudanças climáticas”. Ou seja, alimenta atalhos heurísticos negacionistas.
Jornalismo e divulgação científicos precisam ser cuidadosos, não podem parar nas perguntas simples e imediatas, caso contrário não cumprem o que prometem.
(*) Peter Schulz é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira.