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Comunicação humanizada em uma UTI Covid

Cristiano Augusto Franke e outros autores (*) | 11/02/2022 13:30

A pandemia por covid-19 foi marcada por rupturas. Paramos de nos encontrar fisicamente, nos isolamos e nos escondemos atrás de máscaras. Mas mais difícil foram as famílias rompidas quando um de seus membros era internado em unidade de terapia intensiva (UTI). O doente ficava isolado, muitas vezes inconsciente, sem que sua família pudesse vê-lo, cuidado por equipes vestidas quase como astronautas, impossível quase de se identificarem os seres humanos por trás de tantas barreiras. Essas barreiras também se manifestaram na comunicação da equipe médica com os familiares, em suspense pela gravidade e incerteza do prognóstico que caracteriza uma doença nova. Como solucionar o impasse das equipes de saúde sobrecarregadas pelo atendimento e, ao mesmo tempo, proporcionar o cuidado às famílias, ajudando-as não apenas com informações, mas com o apoio de que necessitavam para fazer sentido um mundo cujo futuro era incerto e sinistro? Pois aqui vamos contar a iniciativa criada dentro de um hospital SUS (Hospital de Clínicas de Porto Alegre, HCPA) e de uma Universidade Pública (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS), com o propósito de tentar criar pontes entre o doente, seus familiares e os profissionais de saúde e, assim, buscar superar algumas das tantas rupturas impostas pela pandemia.

Até 23 de janeiro de 2022, 4.100 pacientes foram internados – e a maioria intubados – em dez UTIs Covid do HCPA. Foi necessária a contratação emergencial de novos profissionais em todas as áreas. Mas a pandemia exigiu mais! A UTI Covid concentrou antigos e novos desafios, em especial na comunicação em saúde efetiva e humanizada. Os momentos anteriores à instalação da ventilação mecânica invasiva (intubação) com sedação, levando o paciente à inconsciência, podem ser os últimos em que ele terá contato com seus familiares. A essa situação extremamente delicada, soma-se a necessidade de tomada de decisões, muitas vezes críticas, em relação ao paciente, como limites terapêuticos e cuidados paliativos, que devem incluir e respeitar a vontade e as crenças do doente, uma vez que, quando inconsciente, é a família que fala por ele. Família esta que, no auge da pandemia, foi impossibilitada de realizar visitas físicas ao hospital em decorrência das restrições de isolamento. Frente a esse cenário e com o envolvimento de docentes e profissionais do HCPA, foi criada uma iniciativa inovadora cuja trajetória compartilhamos brevemente.

Como incluir a família nesse cenário?

Já havia um movimento de humanização dos processos das UTIs HCPA que, durante a pandemia, propiciou que profissionais intensivistas (medicina, enfermagem, psicologia e bioética) chamassem um grupo, formado pela colaboração voluntária de outras áreas médicas de fora da UTI, para fazer a comunicação com as famílias. Assim médicos de diversas áreas, como patologistas, psiquiatras, geneticistas, entre outras, passaram a comunicar remota e diariamente a evolução clínica dos doentes às suas famílias.

Houve treinamento desse grupo, abordando desde assuntos técnicos até discussões sobre como comunicar notícias difíceis como a irreversibilidade clínica ou mesmo o óbito. Evidentemente, médicos são treinados para essas situações em sua vida profissional, mas os grandes desafios naquele momento eram o meio (comunicações remotas telefônicas ou em vídeo) e a natureza dos pacientes (pessoas sob cuidados de outros profissionais). Mais ainda, envolviam fluxo bidirecional da equipe assistencial: comunicador – família, e o inverso.

As conversas diárias com os comunicadores permitiram que famílias acompanhassem detalhadamente a evolução do paciente e os procedimentos de cuidado intensivo, assim como a discussão conjunta sobre intervenções e limites terapêuticos. Situações de evolução desfavorável e possibilidade de óbito puderam ser trabalhadas continuamente. Essa rotina oportunizou a realização de visitas presenciais de despedida quando da perspectiva de óbito do paciente, com o apoio de profissionais da psicologia, que acompanhavam os familiares. A equipe da psicologia também acompanhou, em interação com os comunicadores, famílias com demandas emocionais mais complexas.

Devido ao longo tempo de internação, criou-se um vínculo próximo entre o comunicador e a família, a partir de conversas que aconteciam mesmo em domingos e feriados. Como resultado, o comunicador desempenhou diversos papéis adicionais, ao orientar outros membros do núcleo familiar que poderiam estar doentes ou adoecendo, fornecer documentos médicos, identificar necessidades e articular a intervenção do serviço social e mesmo do apoio espiritual ou religioso disponibilizado pelo HCPA.

Muito marcantes foram as comunicações de óbito. A maior parte dos comunicadores, quando da probabilidade de morte do paciente, dormia com o celular ao lado para que a equipe assistencial pudesse alcançá-lo e ele, por sua vez, pudesse alcançar a família daquele paciente.

A uniformidade e a união da equipe assistencial e de comunicadores foi oportunizada por meio de reuniões semanais com formação continuada, discussão dos casos complexos, planejamento de ações e apoio aos comunicadores na superação da sobrecarga emocional. A elaboração de manuais e a descrição técnica dessas atividades podem servir de modelo para outras instituições de saúde ou outros momentos de excepcionalidade.

Muitos dos pacientes voltaram às suas famílias com necessidades maiores ou menores de recuperação, mas um número muito grande terminou sua vida na UTI. Os relatos dos familiares, como o exemplo que trazemos, mostra como esse modelo ajudou decisivamente na elaboração significativa das perdas que vivenciaram.

O aprendizado que fica: que emoção, solidariedade e humanização andam ao lado da alta tecnologia e da medicina baseada na evidência científica, mesmo em condições adversas; que nossas instituições públicas podem dar respostas rápidas e eficientes para o enfrentamento da tragédia, com crescimento de toda a equipe ao compartilhar momentos difíceis, mas também carinho, gratidão, pertencimento e respeito.

Para finalizar, compartilhamos o depoimento de um familiar atendido por um dos comunicadores:

“Nesses 108 dias o senhor, juntamente com toda a equipe do HCPA, foram uma peça fundamental. O pai nos últimos 20 e poucos dias acordou, nos reconheceu, interagiu por alguns dias, viu que não estava sozinho, disse que nos amava, queria ir até a Ilha de Alcatraz, hahaha. Falei de ti pra ele… Ele queria viver, doutor. Compor mais poesias, lecionar mais para seus alunos, ir mais vezes na pracinha com seus netos, me ver habilitada para dirigir, mas não deu!!! Obrigada, doutor, pelas notícias do dia, por fazer tanto por aquele humilde e simples homem. Toda a equipe de médicos, residentes, fisioterapeutas, fonoaudiólogas, psicóloga, enfermeiros, técnicos de enfermagem e higienização, todos eram extremamente maravilhosos! O pai estava super bem cuidado! Ele morreu sabendo que todos nós estávamos vacinados contra a covid e ele descansou, lutou a vida inteira pela saúde! Ele era um homem bom e foi sempre grato ao HCPA. Disse que o hospital morava no coração dele!! Valeu, doutor!!”

(*) Cristiano Augusto Franke é médico intensivista do Serviço de Medicina Intensiva do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
(*) Rita Gigliola Gomes Prieb é psicóloga e chefe do Serviço de Psicologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
(*) Mauro Antônio Czepielewski é médico e professor titular do Departamento de Medicina Interna da Faculdade de Medicina da UFRGS.
(*) Karina de Oliveira Azzolin é professora associada da Escola de Enfermagem da UFRGS.

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