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Consumo após crise do mercado de turismo pelos episódios Hurb e 123 Milhas

Por Michel Scaff Junior e Ana Clara Schuh Ibrahim (*) | 24/10/2023 13:30

Nos últimos anos, o setor de turismo foi revolucionado pelo surgimento das agências de viagem online, que agrupam em suas plataformas diversas opções de pacotes de viagens aéreas e hospedagens. No entanto, no último ano houve um boom no aparecimento de problemas em determinadas empresas, demonstrando algumas fragilidades desse modelo.

Três empresas apresentaram problemas mais notórios em seu funcionamento nos últimos meses: o Hotel Urbano (Hurb), a 123 Milhas e o Booking.

Hotel Urbano é uma empresa de agenciamento de viagens que se utiliza de estatísticas e algoritmos para detectar as reduções de preços e oferecer pacotes mais em conta do que as agências convencionais. A 123 Milhas é uma intermediária na venda de passagens aéreas com desconto, principalmente quando emitidas com milhas acumuladas por programas de fidelidade das companhias aéreas. Já o Booking é uma plataforma online em que os consumidores podem reservar acomodações para suas viagens.

Os problemas começaram a surgir com a normalização das atividades depois do fim da pandemia da Covid-19, uma vez que houve uma espécie de divergência entre as expectativas das empresas e o comportamento do consumidor após o fim das políticas de isolamento social, principalmente com os altos preços das passagens e inflação global. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o preço das passagens aéreas subiu 17,59% em 2021 e 23,53% em 2022, considerando a variação pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

Segundo Carolina Curimbaba, especialista em gestão pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP), as empresas tiveram que suportar o desencaixe dos valores pagos pelos consumidores e o gasto que teriam com a compra das passagens em razão da venda dos pacotes abaixo do preço e com margens baixas. Dessa maneira, viram-se em situação financeira insustentável, uma vez que o mercado consumidor atualmente não está ativo o suficiente.

Além da situação pós-pandemia, especialistas afirmam que o cerne do problema, principalmente da Hurb e da 123 Milhas, se encontra também na venda de passagens sem data definida, uma vez que é um modelo de alto risco. Marcelo Oliveira, assessor jurídico da Associação Brasileira de Agências de Viagens afirma que as empresas vendem os direitos de viagem sem terem certeza se poderão entregar o que venderam, uma vez que diversos fatores podem impactar no preço dos bilhetes.

Outros afirmam que esse tipo de oferta fere expressamente o Código de Defesa do Consumidor, tendo em vista que não há uma informação exata do dia da viagem, da empresa aérea e muito menos do local de hospedagem. Haveria, então, descumprimento do dever de informação previsto em lei, além do risco de prejuízo ao adquirente em função de que a própria fornecedora é incapaz de garantir a prestação de serviço sem falhas.

Há que se destacar que tais empresas não imaginavam que estariam enfrentando essa situação, vez que o investimento em marketing foi exorbitante. A 123 Milhas apostou em um aporte de R$ 2,37 bilhões na compra de espaço publicitário, enquanto o Booking investiu cerca de US$ 6 bilhões em marketing, cerca de 35% de sua receita total. Quem nunca estava mexendo em suas redes sociais e foi surpreendido com uma oferta da empresa, a qual chamava atenção pelo baixo custo nos serviços ofertados?

A responsabilidade dos fornecedores se funda no risco-proveito, ou seja, no proveito econômico conquistado por meio da disponibilização do serviço ou produto no mercado de consumo, arcando com os riscos inerentes do negócio. Novamente aqui, destaca-se a falha no dever de informação, uma vez que é vedado aos fornecedores a oferta de serviços sem a garantia de sua prestação.

Apesar dos problemas apresentados pelas empresas possuírem especificidades, é certo que a causa é comum: a deficiência no gerenciamento da crise.

O início dos problemas da Hurb, potencializado com as polêmicas do ex-CEO, o qual debochou da situação de um consumidor que não teve as suas passagens emitidas, revelou-se a ponta de um iceberg de não cumprimento das ofertas prometidas aos consumidores. As reclamações no Procon cresceram exponencialmente, uma vez que os clientes começaram a identificar os problemas quando não recebiam as informações dos voos ou das hospedagens contratadas. Constataram-se mais de 7 mil reclamações apenas no início do ano.

A Hurb enfrentou um verdadeiro impasse com relação ao repasse de verbas provenientes dos pacotes contratados, tanto que optou pelo cancelamento das viagens ofertando créditos e a possibilidade de reembolso no prazo de 60 dias úteis.

Dessa maneira, o Ministério da Justiça e Segurança Pública determinou a abertura de um processo administrativo sancionador contra a Hurb por desrespeito aos direitos dos consumidores que compraram pacotes de viagens com a plataforma. A Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) asseverou que a situação é extremamente inaceitável e que o processo seria uma medida para coibir práticas abusivas no mercado de turismo. Também restou suspensa a venda de novos pacotes com datas flexíveis.

No caso da 123 Milhas, foi a própria empresa que informou o não cumprimento das ofertas, suspendendo as viagens de setembro até dezembro de 2023. A decisão unilateral frustrou diversos consumidores, principalmente em razão do reembolso apenas por meio de vouchers a serem utilizados com a própria empresa. Essa imposição viola o artigo 35 do Código de Defesa do Consumidor, que determina que, em caso de recusa à oferta, cabe ao consumidor escolher como terá a sua restituição.

Por conta da decisão da empresa, foram publicadas mais de 15.483 reclamações no Reclame Aqui, sendo que o número total no mês de agosto foi 17.303, correspondendo a cinco vezes mais que o total registrado em julho (3.039). Em 2023, o mês com maior número de reclamações tinha sido até então janeiro, com 6.473 registros.

A Senacon notificou a 123 Milhas para prestar esclarecimentos em decorrência da suspensão do cumprimento dos pacotes promocionais. Wadih Damous, secretário nacional do consumidor, afirmou que o reembolso deve garantir que os consumidores não tenham prejuízo e a opção de voucher não pode ser impositiva. Em resposta, a 123 Milhas solicitou uma audiência com o órgão para detalhar a situação. Caso não seja apresentada uma solução factível, o órgão cogita a instauração de um processo administrativo podendo culminar na imposição de uma multa no valor de R$ 13 milhões, além de outras penalidades.

Não obstante, o pedido de recuperação judicial da 123 Milhas, o qual até o momento está suspenso, afeta os interesses dos consumidores ao dificultar a restituição dos valores pagos e reparação de eventuais danos, demonstrando falhas em toda a estratégia de vendas e análise de risco da empresa.

Toda a situação ocorrida ao longo deste ano chamou a atenção especialmente do foverno federal, tanto que o ministro do Turismo, Celso Sabino, afirmou que será feita uma análise sobre o modelo a qual as empresas de viagens comercializam os produtos a custo abaixo do mercado, como praticado pela 123 Milhas e a Hurb, uma vez que a atividade pode ser considerada abusiva e, portanto, proibida no País, por força da legislação consumerista [9].

A situação do Booking é diferente das demais, mas também demonstra uma preocupação em relação ao setor de turismo brasileiro, bem como à infração dos direitos do consumidor. Isso porque há diversas reclamações de que a empresa não está repassando o dinheiro das reservas aos hotéis e, em razão disso, os locais acabam cancelando a oferta sem avisar aos clientes, os quais são surpreendidos ao chegar no local de destino.

As reclamações aumentaram nas redes sociais da empresa e em veículos de notícias. No site do Reclame Aqui há diversas publicações relatando o atraso nos pagamentos, bem como a dificuldade do contato com a Booking e as falsas promessas no repasse do dinheiro, causando prejuízos aos hotéis vinculados à agência.

Apesar da situação do Booking aparentar ser algo pontual, é algo que chama a atenção do consumidor em meio às grandes crises no setor de turismo, a exemplo das empresas como o Hurb e a 123 Milhas. Em razão disso, os deputados federais buscam a inclusão da plataforma do Booking e do Hurb na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Pirâmides Financeiras, a qual já conta com a participação da 123 Milhas.

É importante observar que o mercado de consumo está sempre sujeito a mudanças devido a uma variedade de fatores, incluindo eventos econômicos, crises, avanços tecnológicos e mudanças nas preferências dos consumidores. Com a recente repercussão dos citados casos é de se esperar uma mudança no comportamento de compra, talvez a partir da busca direta das empresas fornecedoras dos serviços, em detrimento da contratação de intermediários. Isto é, a garantia do serviço prestado se sobrepondo ao preço mais atrativo.

Portanto, para a atividade é importante considerar o contexto geral do mercado que, no atual momento, apresenta tendência a um consumo mais consciente, prezando pela importância da confiabilidade e garantia do serviço contratado.

(*) Michel Scaff Junior é sócio do escritório Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados.

(*) Ana Clara Schuh Ibrahim é advogada.

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