Elas juntas colocam o bloco na rua e criam um potente espaço educacional
Elas, MULHERES
Elas, mulheres que FAZEM O CARNAVAL
Elas, mulheres que fazem o Carnaval EM PORTO ALEGRE
Elas, mulheres que fazem o Carnaval DE RUA, em Porto Alegre
Elas, BRINCANTES – entre bateria, harmonia, vocal, direção, porta estandarte, performer, apoios técnicos diversos
Elas, JUNTAS
Elas, por estarem juntas, descobrem como cada uma dança, toca, canta e se fantasia com o brilho e as cores desse Carnaval amarelo, roxo e vermelho
Elas, DESCOBREM JUNTAS os diferentes pensamentos, sentimentos e experiências que as fazem estar ali
Disse Kaya Rodrigues sobre esse encontro entre as mulheres: “Então o que uma mulher de 50 anos e uma menina de dezessete pensam sobre o mundo são… são coisas diferentes, né…”
São elas, mulheres entre dezessete e mais de 50 anos que resolvem…
…que não vão andar só
…que vão colocar o bloco na rua
…que vão, sendo mulheres, ocupar ruas e praças de Porto Alegre com o CARNAVAL
Elas, as mulheres que são fonte de referência para este texto, são as integrantes do bloco de Carnaval de rua “Não Mexe Comigo Que Eu Não Ando Só”, fundado em Porto Alegre em 2016. Um bloco exclusivamente feminino e com propósito de apresentar um repertório que coloque questões do debate feminista em evidência em seu cortejo.
Minha relação com o bloco se desenvolve entre 2017 e 2019, quando realizo a pesquisa para a tese de doutorado em Educação. Na ocasião investiguei sobre o potencial educacional dos encontros do bloco. Por isso, ao trazer o tema do Carnaval para o jornal, escolho apresentar as relações e situações dessa prática entre mulheres como um processo educativo potencializado pela arte do Carnaval.
Como um primeiro ponto desse potencial educativo, destaco que conheci – nesse período – mais de 150 mulheres. Conforme a brincante Kaya nos conta acima, a extensa faixa etária que compõe o bloco coloca gerações diferentes em relação, o que faz com que visões de mundo distintas e, inclusive, conceitos distintos de feminismos, Carnaval e mesmo sobre o significado de ser mulher habitem, obrigatoriamente, este espaço.
E por que persigo a ideia de que essa convivência é educacional? Por que a junção entre as mulheres com o objetivo comum de realizar um Carnaval feminino e feminista não implica reduzir os significados dos termos “Carnaval”, “feminino” e “feminismo” em um consenso único, estático e fechado. Em outro sentido, o que as mulheres constroem a partir das evocações do Carnaval é uma relação em que seja possível compreender as diferenças entre elas como existências possíveis. E mais, que as existências possam ser expressas em poesia com o corpo.
Essa é, sobretudo, uma questão que importa à Educação: o reconhecimento das diferentes existências que compõem a sociedade. E, ainda, a promoção dessas existências em festa, como motivo de celebração. Aparece, então, um cruzamento fecundo entre os universos do Carnaval e da educação: a produção de espaços de expressão do que se é, em exagero, para exposição pública, pela criação e pela estética, pelo reconhecimento público; a produção de uma posição em que a existência seja algo a ser visto e admirado, que ocupe o lugar de encantamento e fruição, que culmine na produção de um espaço em que ocorra a elaboração e a compreensão dessas existências expostas a partir da expressão carnavalesca para ampliação daquilo que se entende como possível.
Com inspiração na canção “Todxs Putxs”, de Ekena, que compõe o repertório do bloco, está declarada a pressa, o querer ir pra rua em dança, música, ritmo, vestidas de brilho e flor a fim de afrontar as leis. Dessa forma, a educação percebida desde as relações entre as mulheres em meio à prática de Carnaval toma o sentido de uma proposição de condições de sociabilidade novas, como nos inspira o pesquisador Hans-Georg Flickinger. O que permite pensar em termos de processos em que a ênfase está nas experiências interpessoais que cada uma tece com as outras e com a prática que as envolve.
Em meio às demandas de criar o bloco carnavalesco de rua – e viabilizar do espaço de encontro à fantasia; do repertório ao apoio técnico -, esta outra sociabilidade vai tomando forma pela construção de relações respeitosas que não intencionam uniformizar as ações, mas ressaltar, celebrar e estabelecer condições para que outra mulher possa escolher estar junto, admitindo, assim, que abrir espaço para possibilidades novas de sociabilidade inclui assumir como presente o que ainda não se conhece, aquilo que ainda não se sabe e que nunca foi sentido.
Ou seja, inclui estar aberto a experimentar novas relações e percepções de mundo sem que isso signifique assumi-las para si, mas, sim, assumi-las como reais e pertencentes ao espaço de compartilhamento.
Ademais, a prática que orienta as relações entre as mulheres é um fazer artístico e cultural que evoca a sensibilidade daqueles que as circundam e promove a comunicação de caráter simbólico entre as envolvidas. Nesse sentido, a experiência educacional passa pela criação de uma poética que entrelace as percepções de cada corpo feminino que se coloca a performar o repertório, de cada voz que se propõe a entoar as canções, de cada brincante… e direciona tal trama ao olhar daquelas e daqueles que acompanham o cortejo e compartilham essa expressão – o que seria a pulverização dessa comunicação que intenciona abrir brechas para tornar presente tantas existências.
Por fim, o Carnaval transborda em possibilidades. Faz parar a rua, transforma por algumas horas a via de trânsito rápido em um espaço para estar, com o corpo em festa; é motivo de tornar real a arte da mulher na rua, da mulher que é protagonista daquilo que faz, sente e expressa.
Entre tantas, cantam: “Se essa rua, se essa rua fosse minha, ocupava, ocupava até brilhar. Com as mina, com as mina empoderada, resistindo com a cultura popular…”
(*) Laura Bauermann é doutora em Educação (PUCRS) e licenciada em Dança (UFRGS), professora, pesquisadora, brincante e figurinista.