Era da Fervura Global: os desafios de governança e de justiça climática
Uma das últimas comunicações do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), de 2021, reforçou que as alterações recentes no clima são generalizadas, rápidas, mais intensas e sem precedentes em pelo menos 6.500 anos. A emergência climática já afeta todas as regiões da Terra, de muitas maneiras, e é indiscutível que as atividades humanas estão causando tais mudanças.
Frente a um desafio tão multifacetado como esse, espera-se também que as soluções sejam abrangentes, de modo a incluir diversas áreas da atividade humana e várias partes interessadas e diversos setores da sociedade, como, por exemplo, as agências multilaterais, governos, o setor privado, institutos de pesquisa e grupos da sociedade civil organizada.
Vale chamar atenção para duas recentes e importantes publicações. Uma na edição de setembro da Revista Fapesp, de cuja capa constam uma arte e um título importantes para nossa reflexão. Diz a chamada da publicação: “A Terra Esquenta – Sem freio, o aquecimento global provoca o mês mais quente dos últimos 150 anos e agrava a crise climática”. Comenta-se na revista que o mês mais quente da história recente, julho de 2023, quebrou recordes de temperatura e amenizou até o inverno no Hemisfério Sul.
A temperatura global atingiu 20,96°C em 31 de julho, dia mais quente na história recente do planeta, destaca o jornalista Marcos Pivetta. Em outra matéria, publicada na edição do Jornal da Unicamp relativa à quinzena de 16 a 29 de outubro, apresenta-se uma capa tão impactante quanto a anteriormente mencionada e intitulada: “Clima. Justiça e Governança”. Nas páginas 6 e 7 do periódico, a jornalista Eliane Fonseca Doré apresenta um importante material sobre a (des)governança climática.
Neste artigo focaremos o papel das universidades e de institutos de pesquisa no combate às mudanças climáticas, e isso a partir das conclusões do evento internacional "Emergência Climática: O que a universidade deve fazer para enfrentá-la, já?", realizado em agosto último e promovido pela Comissão Assessora de Mudança Ecológica e Justiça Ambiental (Cameja), órgão vinculado à Diretoria Executiva de Direitos Humanos (DeDH) da Unicamp. Nesse encontro, nossa comissão chegou a algumas conclusões que situam a emergência climática.
Acreditamos que persistir na utilização de petróleo, gás e carvão natural como fontes de energia equivale, na verdade, a manter uma abordagem econômica ancorada no século XX e desvinculada da realidade atual da crise climática.
Os esforços em pesquisa e engajamento internacional, com representantes de instituições como a Universidade Harvard, a Organização das Nações Unidas (ONU), a editora de textos científicos Elsevier, o IPCC, a Royal Society (Reino Unido), a Universidade Eduardo Mondlane (Moçambique), a Universidade Rovuma (Moçambique), o programa de pesquisa Future Earth, entre outras) e nacional (a Unicamp, a Universidade de São Paulo (USP), o Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (Naea), a Universidade Federaldo do ABC (UFABC), a Universidade Federal do Amazonas (Ufam), o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemadem), a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), entre outras, dariam sua importante contribuição.
“Diminuir o desmatamento e avançar na transição para energias renováveis são ações fundamentais, porém não são suficientes para abordar o quadro geral”, afirmou Paulo Artaxo, da USP, do IPCC e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), na última mesa do evento.
“É imperativo desenvolver um urbanismo voltado para o clima e reformar as estruturas e terras agrícolas. Acredito que não se pode confiar apenas em soluções tecnológicas e de mercado para resolver a crise climática. A implementação de soluções exige ações em vários níveis e o envolvimento de múltiplos atores, e é nesse contexto que as universidades desempenham um papel fundamental‘’, ressaltou Leila da Costa Ferreira, da Unicamp e do Earth System Governance.
Desse modo, “as ações de combate às mudanças ambientais globais são estruturais e, portanto, transversais à economia, à cultura, à educação, à pesquisa e à salvaguarda da democracia’’, como foi muito bem notado por Mercedes Bustamante, presidente da Capes, cuja declaração foi reforçada por Ricardo Galvão, presidente do CNPq.
“Devido a sua amplitude, a sua diversidade de pensamento e a seu compromisso com a cidadania, as comunidades universitárias podem desempenhar um papel crucial [nesse processo]‘’, observou o reitor da Unicamp, Antonio José de Almeida Meirelles, em sua intervenção durante o encontro. Declarações de teor semelhante foram feitas pelo pró-reitor de Sustentabilidade da Universidade Harvard, James Stock, e pela ex-ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira.
Nesse contexto, para a Unicamp, que trabalha com temas ambientais há muitos anos, existe a necessidade de avançar, institucionalizando uma área de sustentabilidade. Dada a diversidade das unidades da Universidade, essa mudança organizacional permitiria coordenar ações conjuntas e posicionar a Unicamp como líder do setor na América Latina, de modo a contribuir de maneira significativa com ações de impacto mundial.
Vale destacar que a ONU substituiu o termo Era do Aquecimento Global pelo termo Era da Fervura Global (global boilling), mas a sociedade brasileira, em geral, parece não ter compreendido o papel crucial a desempenhar nessa mobilização. E é aqui que a universidade desempenha o seu papel mais essencial atualmente: educar as pessoas sobre as realidades desafiadoras da emergência climática.
A crise climática não é apenas um problema científico. É também o desafio político e intelectual mais significativo desta época. Além disso, ela está intrinsecamente ligada a outras quatro crises sistêmicas em crescimento: a perda de biodiversidade, a poluição industrial e as persistentes desigualdades econômicas, sociais, raciais e de gênero.
Essas crises – climática, de biodiversidade, da poluição e das desigualdades – alimentam-se mutuamente e representam uma crise maior a afetar a democracia, o neoliberalismo e, em última instância, a civilização. Tendo em vista isso, uma questão central impõe-se: como a mudança climática está transformando a sociedade e a política na Era da Modernidade Predatória (capitalismo)? Essa reflexão, percebe-se, conclama à superação do neoliberalismo e à adoção de novas formas de responsabilidade transnacional.
No Brasil, onde já ocorrem eventos climáticos extremos, como secas na Amazônia, enchentes no Rio Grande do Sul e ondas de calor pelo país todo, faz-se necessário encontrar soluções de resiliência, que vão além de uma abordagem reativa. Deve-se repensar a maneira como são desenvolvidas as cidades e suas estruturas, tornando-as mais antecipatórias e mobilizando ativamente a população.
A justiça climática envolve a integração urbana e a regeneração ambiental com vistas a reequilibrar o clima, além de garantir a observância dos direitos humanos. Esse esforço também implica criar estruturas urbanas resilientes para enfrentar os impactos crescentes dos eventos climáticos extremos. Para que o Brasil se torne uma potência ambiental e um protagonista no cenário mundial, é necessário apostar na descarbonização da economia, na sustentabilidade ambiental e na equidade social, o que requer um forte investimento em pesquisa científica e medidas econômicas para a conservação da biodiversidade, a proteção das terras indígenas e o reflorestamento de áreas nativas. As universidades precisam assumir que desempenham um papel fundamental nesse processo.
(*) Sonia Regina da Cal Seixas é pesquisadora sênior do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam) da Unicamp e presidenta da Comissão Assessora Executiva de Mudança Ecológica e Justiça Ambiental (Cameja)
(*) Leila da Costa Ferreira é professora titular de Sociologia Ambiental da Unicamp e vice-presidente da Comissão Assessora de Mudança Ecológica e Justiça Ambiental (Cameja)
(*) Ronei Thezolin é jornalista e membro da Comissão Executiva de Mudança Ecológica e Justiça Ambiental (Cameja)