Lei 13.800/2019: mais um problema?
Um dos últimos atos do período Temer, já no final de 2018, foi a Medida Provisória 851, que deu origem à Lei 13.800, promulgada no início de 2019. Essa lei autoriza instituições públicas, cujas atividades estejam relacionadas à educação, cultura e pesquisa científica ou tecnológica, entre outras, a firmarem parcerias e executarem projetos com organizações privadas gestoras de fundos patrimoniais.
Essa lei permite que a relação ocorra diretamente entre a entidade gestora do fundo e docentes ou funcionários da entidade pública, não necessariamente intermediada por seus órgãos deliberativos, como os conselhos departamentais e universitários ou as congregações e outros órgãos equivalentes no caso de universidades. A lei também prevê a destinação dos recursos para fins específicos, definidos pela entidade gestora do fundo. A universidade ou o órgão público não tem nenhum poder sobre o destino desses recursos. A decisão do que será feito com os recursos e as atividades e as pessoas que serão beneficiadas, inclusive pessoalmente, é da entidade gestora do fundo, ferindo o preceito de autonomia universitária.
Vamos analisar mais alguns aspectos dessa lei e de como ela surgiu.
Como é usual, uma proposta ao Legislativo é acompanhada por uma justificativa. E a justificativa que acompanhava a MP 851 afirmava, em seu início, que a “experiência internacional mostra que fundos patrimoniais representam fonte importante de receita para instituições públicas, em especial doações para universidades […] são extremamente importantes em outros países. […] A Universidade de Harvard, por exemplo, possui um fundo cujo patrimônio é estimado em US$ 37,6 bilhões. Outras universidades de primeira linha, como Stanford, Princeton e Yale, administram fundos com patrimônios estimados entre US$ 20 e 25 bilhões”.
A expressão “experiência internacional” induz o leitor a entender que fundos patrimoniais em volume significativo, como os das instituições citadas, que chegam à casa de um ou mesmo alguns milhões de dólares por aluno matriculado, existem, como regra, em muitos países, o que é falso.
Fundos patrimoniais com valores significativos são comuns apenas em algumas poucas (e pequeniníssimas) universidades privadas dos EUA. As universidades citadas e todas as demais cujos fundos patrimoniais podem gerar uma renda significativa em comparação com seu orçamento têm menos do que 1% dos estudantes daquele país.
A justificativa também sugere que as instituições citadas são públicas, o que também é falso: elas são instituições privadas. Também é necessário lembrar que tais fundos pertencem àquelas citadas universidades e não a entidades externas a elas, como prevê a Lei 13.800.
Universidades públicas dos EUA, onde estão três quartos dos estudantes universitários, não têm fundos patrimoniais significativos. Os fundos patrimoniais por estudante dessas instituições, quando existentes, são muito inferiores àqueles das pequenas instituições privadas citadas. Vejamos alguns exemplos. A Universidade da Califórnia, uma das melhores do mundo, com cerca de 300 mil alunos, tem um fundo patrimonial por estudante da ordem de 150 mil dólares, não mais do que 3% do valor observado na Universidade de Princeton (que tem cerca de 5 mil alunos). O fundo patrimonial da Universidade do Estado da Califórnia, também pública, com quase 500 mil alunos, é, por estudante, da ordem da milésima parte daqueles das universidades privadas citadas na MP. Os fundos patrimoniais das duas grandes universidades públicas do Estado de Nova York, com cerca de 700 mil matriculados, são, por estudante, da ordem da centésima parte daqueles das universidades privadas citadas na justificativa da MP 851/2018.
Os fundos patrimoniais também são insignificantes ou mesmo inexistentes nas demais universidades privadas dos EUA, onde está a maior parte das matrículas desse tipo de instituição. Fora dos EUA, fundos patrimoniais são ainda mais raros e, quando existentes, têm valores por estudantes muitas vezes menores do que aqueles das pequenas universidades privadas daquele país.
Em resumo, a Lei 13.800/2019 foi fundamentada em afirmações enganosas ou falsas. Mas a lei, agora, está aí. Se ela não vier a ser revogada, a autonomia didática e científica das universidades públicas poderá estar comprometida. Para evitar isso, estas devem criar mecanismos que as permitam exercer essa autonomia sem influências definidas por interesses privados.
(*) Otaviano Helene é professor do Instituto de Física da USP