Louvado seja o Negro, o bastião da cultura popular, rei do Carnaval!
Cultura é tudo aquilo que a humanidade pode conceber, sendo um processo social que une todos os seres. Sendo assim, todo e qualquer indivíduo é ligado a uma cultura e por essa razão é incoerente aquele que discursa apontando para o próximo alegando que ele não a possui. Alguns estudos filosóficos afirmam que cultura não é algo objetivo, outros asseguram que ela se coisifica nos elementos que constituem as Belas Artes (pintura, escultura, música, literatura e artes cênicas) e em instituições tais como teatros, museus, galerias e escolas. Para alguns, cultura é frequentar teatros elitizados com a intenção de assistir a apresentações de balé clássico, concertos de música erudita ou ainda viajar a Paris a fim de contemplar obras de arte expostas em museus como o Louvre ou o D’Orsay. Já para outros a cultura é ampla e abrange todos os segmentos, principalmente o popular. Para estes, cultura é a peça teatral que faz das ruas o seu palco, é a riqueza do cancioneiro popular, seja o sertanejo ou o sambista, é ainda aplaudir os cortejos das quadrilhas juninas ou dos desfiles carnavalescos.
A cultura popular no Brasil é plural e, ao a compararmos com uma árvore frondosa, podemos afirmar que possui muitas ramificações, tal qual o folclore brasileiro. Muitas dessas manifestações recebem a rica contribuição de elementos de origem africana na formação da sua identidade, construindo diálogos repletos de simbolismos e significados. Vale a pena ressaltar o relevante fato de que o Negro mesmo na condição de escravizado foi um civilizador que, acometido pela barbárie promovida na escravidão, foi “desafricanizado” e, por não ser índio nativo nem branco colonizador procurou encontrar sua identidade como brasileiro, construindo um grandioso legado.
Nessa constituição, as artes, a ciência e a religiosidade transformaram-se em vigas para que a nova identidade sociocultural afro-brasileira fosse disseminada, tornando-se, assim, tradição nas manifestações populares neste país.
Formados por grandes grupos, os cortejos que ganham as ruas fazem parte da tradição afro-brasileira e, para driblar a opressão, incorporam também elementos da cultura europeia, como podemos ver no Maracatu, nas Congadas de Maçambique e nos desfiles das escolas de samba. Essa mistura é nítida quando os personagens da realeza africana, que ganham vida nas figuras imponentes de reis, rainhas, príncipes, princesas, porta-estandartes, mestres-sala e porta-bandeiras, fazem uso de trajes típicos da nobreza europeia, também fundindo as danças ancestrais aos passos do minueto.
Sabemos que os desfiles carnavalescos no Brasil são originados dos corsos promovidos pelas grandes sociedades elitistas, mas foi o negro, excluído nas periferias, em conjunto com o seu Samba, o responsável por transformar a festa com a sua alegria. Baseando-se na estrutura social oferecida pelas religiões de matriz africana em seus ambientes de culto e buscando pavimentar caminhos de aceitação coletiva, no Rio de Janeiro, o Negro cria uma nova instituição na intenção de reunir os membros de sua comunidade para que juntos pudessem expressar a sua cultura de forma ampla. Essa agremiação foi batizada de Grupo Carnavalesco e posteriormente rebatizada como Escola de Samba, sendo um costume propagado em várias regiões do país, tornando-se uma das referências da cultura nacional. Surge então mais uma expoente da Cultura Popular que por seu grande poder de aglutinação é comparada ao futebol, uma vez que ambos são igualmente valiosos segmentos culturais formadores da identidade brasileira e por excelência são considerados dogmas.
A escola de samba possui a importante missão de cultivar a sensação de pertencimento em todos os seus adeptos, promovendo a inclusão social ao estimular a criação de muitos artistas, pois tornou-se o templo popular de todas as artes, onde seus adeptos exercem os ofícios que compõem a energia vital que impulsiona o coletivo a desfilar.
Em uma escola de samba não se aprende a sambar; seus alunos recebem lições sobre dignidade, amor e respeito sem fazer uso de cartilhas, obtendo altos índices de aprovação. Quem bebe desse saber possui um currículo de grande gabarito, o qual lhe permite abrir muitas portas para que passe a transitar livremente em mundos que muitos pensavam nunca conhecer e habitar.
A quadra de ensaios de uma escola de samba é um local sagrado e exige ser respeitado como tal. Assim como todos os locais de culto ao divino, ela também possui seus elementos ritualísticos que são reverenciados por todos os seus devotos, do portão de entrada até o altar, o verdadeiro altar do samba. Como nos grandes templos, a escola de samba também semeia em cada um dos seus adeptos a devoção, esta que, acendendo uma grande corrente energética e agregadora, provoca procissões anuais fervorosas. Existem nesse lugar fundamentos responsáveis por manter em pé os alicerces erguidos por longos e velhos anos em nome da Cultura Popular, os quais nenhum teólogo um dia poderá conceituar.
Quando chega o dia em que o ensaio acontece, os fiéis se dirigem à egrégora para juntos promoverem o culto. No rufar dos tambores, o primeiro acorde do louvor ecoa, fazendo o manto e o lábaro adorados serem desfraldados e, quando apresentados, elevam seus seguidores ao êxtase. Nesse “xirê”, o espírito da alegria se manifesta tocando a alma de todos os presentes. Para a escola de samba, todo o cidadão que ajuda a formar o seu universo possui uma importância ímpar; em seu templo não existe, portanto, discriminação, pois todos os credos, todas as etnias e todos os gêneros são recebidos de braços abertos.
Quando no calendário o tempo aponta o mês de fevereiro, o brasileiro que espera ansiosamente pela chegada do Carnaval para tomar as ruas conta os dias para o início da festa na qual poderá encarnar o personagem que quiser. Então o coração de um país em festa arde em chamas e o caldeirão cultural transborda, atingindo todos os limites territoriais.
Tomados pela euforia, os cortejos negros ganham as grandes vias: o Maracatu em suas Nações, os Afoxés, os Blocos, as Bandas e as Escolas de Samba que apresentam um grandioso espetáculo a céu aberto na avenida que se ilumina com o brilho dos astros que descem à Terra, pois o asfalto é tomado por uma constelação. Ali todo o sofrimento causado pela cruel realidade cotidiana dá lugar às ilusões de um mundo fantástico onde o mais humilde se torna a grande majestade.
Longe dos holofotes, as cabrochas se enfeitam, as Mães Baianas se armam em meio a suas rendas e patuás, e os Sambistas se vestem de nobres. Surgem palhaços, pierrôs, arlequins, colombinas, índios, e todos os personagens que ilustram os livros de história ganham vida. As Alegorias decoradas com as cores do prazer formam cenários inebriantes para contar o enredo e exibir esplendorosos destaques. Trajando riqueza, baila a garbosa Porta-bandeira, sendo cortejada pelo elegante Mestre-sala, que risca o chão de poesia, gira a Porta-estandarte faceira, defendendo o símbolo de uma tradição. A sirene ecoa para anunciar o início do deslumbramento, a inflamada Bateria contagia a todos com a forte marcação dos tambores que pulsam feito um coração. O canto se espalha no ar, e a magia do Carnaval se deleita. Conforme a escola se apodera do seu palco a céu aberto, a emoção se agiganta, arrancando aplausos fervorosos do público que assiste encantado a digna manifestação da Cultura Popular e que, aos gritos frenéticos, eleva o Negro ao título de Rei do Carnaval.
Ao dissertar sobre o importante papel do Negro na construção da identidade cultural brasileira, homenageio as Escolas de Samba, as Tribos, as Bandas e os Blocos Carnavalescos pela maciça contribuição para o fortalecimento da Cultura Popular em um país que deveria entoar seu hino nacional sob a cadência do mais primoroso samba, em que o maestro dita o ritmo na palma da mão, regendo os arranjos luxuosos de tamborins, cavaquinhos e violões.
(*) Luiz Augusto Lacerda é graduando do Bacharelado em Artes Visuais, carnavalesco e figurinista.