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Maradona e a (re)construção da identidade argentina

Rafael Duarte Villa (*) | 30/11/2020 08:00

Parafraseando o pensador alemão Herbert Marcuse, Maradona foi um excepcional homem multidimensional que viveu em dois séculos, os quais ele marcou e pelos quais foi marcado nas suas circunstâncias particulares. Não foi um ator político, mas seus atos tiveram, consciente ou inconscientemente, consequências que tocam também o plano político internacional, ajudando a construir circunstâncias e a ser construído por elas.

Haviam-se passado quatro anos da Guerra das Malvinas, de 1982, aquela em que os generais argentinos arrastaram milhares de jovens a uma cruenta batalha contra a Inglaterra de Margareth Thatcher, e da qual os argentinos saíram derrotados e muito humilhados. Apesar das declarações protocolares de governos e autoridades esportivas internacionais, o jogo entre ambas as seleções, na Copa do Mundo do México de 1986, não tinha como não ser marcado pelos ecos políticos do recente conflito entre os dois países.

E no dia 22 de junho daquele ano Maradona protagonizou, contra a Inglaterra, dois dos gols mais emblemáticos da história do futebol: aquele feito pela “mão de Deus”; e o outro, considerado por muitos cronistas esportivos o gol mais maravilhoso de todos os tempos, em que driblou mais da metade do time inglês, incluindo o goleiro. Mas o gol não ficou apenas no momento épico e artesanal do futebol. Poucos momentos do esporte (talvez desde as irreverências do atleta negro americano Jesse Owens nos Jogos de Berlim, em 1939, frente a Adolfo Hitler) guardaram tanta ação interativa com o contexto político internacional de sua época.

“É o maior gol da história das copas pelo contexto histórico, já que a Guerra das Malvinas tinha acontecido anos antes. Era um jogo muito esperado. Os ingleses e argentinos queriam o jogo. Era em um estádio histórico, o Azteca, do final da Copa de 1970. Maradona consegue ser o autor do gol mais bonito e do mais polêmico, de mão” (SporTV.com, 28/1/2014).

Entre essas múltiplas dimensões da vida de Diego Armando Maradona, embora não fosse um político, uma que sobressai está relacionada com seus vínculos a governos e personalidades da esquerda latino-americana, principalmente junto a Fidel Castro. Talvez sua origem social explique esse discreto charme que para Maradona tiveram algumas personagens da esquerda latino-americana. É que, nascido em Lanús, na província de Buenos Aires, ele cresceu em Villa Fiorito, um bairro extremamente pobre da periferia da capital argentina. Metaforicamente, sua origem social muito provavelmente marcou sua tendência a jogar pela ponta esquerda, tanto no campo quanto no contexto da política latino-americana.

Assim, sem incursionar na política diretamente, Maradona teve seu maior momento de empatia coletiva com a esquerda latino-americana na oposição ao projeto da Associação de Livre-Comércio das Américas (ALCA), impulsionado pelos Estados Unidos na era W. Bush. Analistas veem, na reunião de Mar del Plata, em outubro de 2005, o ato derradeiro daquele projeto. E lá estava Maradona, ao lado de Chávez, gritando um dos mais famosos coros do protesto frente aos Estados Unidos: “ALCA, ALCA, al carajo”, sendo aclamados, no melhor estilo populista latino-americano, por milhares de ativistas, organizações humanitárias e ecológicas.

Mas Maradona, para além desse ativismo internacional, em si, já faz parte do grupo de indivíduos formadores da identidade argentina, ao lado dos próceres da independência e de grandes escritores da língua espanhola, como Borges. Quem já foi à Argentina sabe o que Maradona significa para a consciência nacional daquele país. O “Diego” usado cotidianamente para referir-se a ele denota uma proximidade social que nenhum outro herói daquele país conseguiu ter. Desse modo, talvez sem saber, ele contribuiu muito para recuperar um pouco de uma identidade, não perdida, mas extremamente golpeada pela ditadura.

Não foi só na Argentina, no entanto, que Maradona colaborou com a reconfiguração de identidades coletivas. Sua escolha por jogar no Napoli da Sicília nos anos 80, num lugar tão discriminado na Itália, “um orientalismo” dentro dos imaginários europeus ocidentais, trouxe não só alegrias para os napolitanos como ajudou a (re)agregar a identidade coletiva daqueles “tristes trópicos do Sul da Itália”. Não é por acaso que, depois de mais três décadas, tantas pessoas da região ainda registram seus filhos com o nome de Diego Armando.

Por fim, mesmo que não tenha atuado como um agente político consciente, no entanto, dentro das circunstâncias políticas nacionais e internacionais que lhe tocou viver, Maradona foi uma força social com um poder de modificação dessas circunstâncias.


(*)  Rafael Duarte Villa é professor livre-docente do Departamento de Ciência Política da USP

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