O Enem e o vestibular
Discutir o vestibular da Universidade de São Paulo, a USP, e de outras universidades públicas do Brasil, dói. Dói porque expõe a desigualdade com transparência. Desigualdade para entrar na faculdade, desigualdade de locomoção, desigualdade de tempo para o estudo-trabalho-estudo.Os caminhos para abordar o tema são variados. É possível debater as políticas de cotas, os salários dos professores ou a precariedade das escolas públicas. Entre tantos temas relacionados com a Educação, escolhi um: o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). O motivo se justifica em razão da nota obtida pelo estudante no Enem interferir, em alguns casos, no resultado do vestibular.
As avaliações brasileiras, dos estudantes e da rede escolar, são variadas: das escolas, do aluno individualmente, para as instituições públicas e privadas.
Em 2022, a minha preocupação é com o Enem.
Por quê? Explico.
A nota do Enem auxilia o aluno a avaliar as habilidades e competências onde o seu desempenho é maior ou menor. O banco de itens do Enem foi pensado para este tipo de avaliação. Posteriormente à sua criação, a nota obtida pelo aluno no Enem foi utilizada, em parte, no vestibular da USP e em outras faculdades.
Por vários motivos, neste ano de 2022, o exame do Enem pode interferir de forma disfuncional nos exames vestibulares, prejudicando a seleção.
Não se trata de uma novidade falar em crise na educação em 2022. Covid, aulas em formato digital, sem preparo das escolas e dos alunos, crise nos mais diversos setores do Ministério da Educação. Muita cebola para ser descascada, com lágrimas e ruínas à vista.
O banco de itens
O banco de itens do Enem foi construído, ao longo de vários anos e governos, por professores de todo o Brasil. Provavelmente, na forma como foi concebido, não existe mais. A construção dos itens exigia análise detalhada de habilidades e competências, calibragem do grau de dificuldade (fácil, médio, difícil), conteúdo adequado à circunstância e, especialmente, valores éticos. Sem atualização, segundo os critérios estabelecidos pelos especialistas, o banco de itens secou.
Qualquer avaliação seleciona de acordo com os objetivos estabelecidos a priori. Por exemplo, ao selecionar livros de literatura para o vestibular, a preocupação concentra-se em perguntas como, por exemplo:
• A leitura do livro selecionado pode ensinar o estudante a ver melhor, com mais profundidade e comprometimento ético, outros seres humanos com suas ambiguidades, pessoais e sociais, escapando dos estereótipos do tipo dinheiro, poder e individualismo?
• A leitura de gráficos e tabelas favorece a educação financeira, sem deixar de lado a análise dos mecanismos utilizados pela publicidade para estimular, por exemplo, compras inúteis?
• As diferentes culturas são valorizadas com propriedade e a beleza, própria, a cada uma delas?
E tantas outras.
Hipóteses
Assim como existe escolha e sentido na seleção de livros, também ocorre valorização de preceitos éticos, na montagem de um banco de itens.
As universidades são centros de pesquisa científica. Para fazer parte desta comunidade é importante preservar, como pressuposto, o exercício e a prática do levantamento de hipóteses, com argumentação sustentada por provas e, especialmente, com respeito ao contraditório, mediante o uso da retórica argumentativa. É assim que a ciência caminha, respeitando pessoas e ideias diferentes.
O banco de itens do Enem, na sua versão original, pressupunha como base de avaliação o interesse do candidato em participar de uma comunidade, “democraticamente” científica, voltada para a elaboração de hipóteses, em discussão, segundo os critérios da lógica argumentativa.
Gráficos e tabelas
O banco de itens do Enem exigia treino na sua elaboração técnica e cuidados éticos. É possível, por exemplo, dependendo do número de variáveis apresentadas num determinado gráfico, forçar uma interpretação para um lado ou para outro. Posso analisar a renda per capita brasileira e não ver a pobreza como ela é, porque divido o valor total da renda pela população. Posso silenciar ou não questionar os índices (PIB) utilizados na análise. O vestibular deve valorizar esse tipo de atividades vinculando-as à ética, evitando a aparência contemporânea de um mundo perceptível apenas como medida e proporção. O Enem salientava a proporção do humano.
O banco também considerava a maior ou menor capacidade do estudante em refletir sobre os processos de simbolização, essencial em tempos de fake news, conforme me lembrou Giovane Direnzi.
As questões elaboradas, por exemplo, com as tirinhas da Mafalda explicam bem o objetivo deste tipo de avaliação. No caso a seguir, o que está sendo dito pelas personagens das tirinhas ultrapassa o sentido literal da palavra. O estudante deve abstrair e entrar num outro patamar da significação do que é dito. A metáfora é um dos elementos favoráveis à simbolização. A importância desta capacidade, simbolizar, é enorme. Ela permite ler ou ver uma imagem, ultrapassar o primeiro significado da palavra, superando o sentido literal, “plano”, e desta forma duvidar, questionar a mensagem emitida.
Dou um exemplo: ao ouvir relatos contraditórios sobre a cloroquina, desconfio. Observo a forma “plana” do que é dito, falado, comparo as provas apresentadas, a natureza dos argumentos. Observo as experiências, os pesquisadores que respeitaram o duplo cego, a revisão de outros especialistas. Acompanho a comprovação da hipótese levantada, para além de evidências superficiais, das falsas aparências, considerando a circunstância histórica do acontecimento.
Outro exemplo pode ser observado nas tirinhas da Mafalda. Ela associa despotismo à vacina, para despertar no leitor uma visão crítica, criando “anticorpos contra os despotismos”. O riso, a graça da tirinha, corresponde à produção, no leitor, da capacidade crítica para além do sentido “plano”, literal.
Dentre as habilidades valorizadas no Enem, destaca-se compreender o que é uma hipótese, sua comprovação e seus benefícios sociais. A avaliação seleciona os alunos que já apreenderam procedimentos próprios da pesquisa científica, comprovando, por exemplo, ser a Terra, redonda.
Dinamitar a matriz original do Enem, elaborada e aplicada pelo Inep ao longo de anos, e utilizada por diversos governos, é grave, gravíssimo.
Faço uma metáfora para explicar:
Imaginem selecionar, com prioridade, indivíduos que acreditam ser a Terra plana ou qualquer outra formulação sem comprovação científica.
É grave, gravíssimo.
Imaginem eliminar os estudantes capazes de compreender a significação da frase de Ailton Krenak: “A Terra pode nos deixar para trás e seguir seu caminho”.
É grave, gravíssimo.
Imaginem suprimir conceitos como, por exemplo, meio ambiente, hierarquizando as espécies em detrimento das relações entre os povos indígenas, a floresta e os animais.
É grave, gravíssimo.
Sem a simbolização, sem a capacidade de abstrair, de fazer cálculos complexos, corremos o risco de ver as coisas encobertas, apenas a aparência das coisas, como no mito da caverna de Platão.
A destruição do conhecimento contido no Inep, produzido ao longo de anos, por dezenas de professores brasileiros, por técnicos bem-preparados, por estatísticos especializados, é muito grave, gravíssimo.
Imaginem o tamanho do desastre, de não poder selecionar aqueles estudantes sem medo do novo, das pessoas diferentes, sem receio de ver a luz, apaixonados pela liberdade e pela felicidade.
Salvar a educação é salvar, com amor, a razão.
(*) Janice Theodoro da Silva é professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.