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O valor da representação

Paulo Nassar (*) | 02/03/2022 13:20

Um dos efeitos da pandemia de covid­‐19 foi a valorização da representação expandida nas organizações, especialmente nas empresas. E este acontecimento não tem volta. A partir de março de 2020, os centros corporativos foram literalmente apagando as suas luzes, cerrando portas e abandonando símbolos tradicionais de poder e de representação, caracterizados a partir das roupas executivas, instalações suntuosas, carros blindados e uma distância ritual entre superiores e inferiores.

A mobilidade do trabalho e do trabalhador iluminou outros espaços e atores de representação da empresa e da instituição. De forma espelhada, a invisibilidade do que a narrativa do taylorismo cunhou como “chão de fábrica” provoca novas leituras – uma delas, a retórica da diversidade organizacional e o social da tríade ESG (Enviroment, Social e Governance) – daquilo que é expresso das hierarquias ditas inferiores. O debate não é novo, ainda nos anos 1940, ao refletir sobre a invisibilidade e não representatividade dos trabalhadores na sociedade e nas organizações, George Orwell destacou de forma contundente:

“As civilizações fundadas na escravatura tiveram um período de 4000 anos (contudo), o que me assusta é que essas centenas de milhões de escravos, em que a civilização passada descansou geração após geração, não deixaram qualquer registro do que quer que fosse. Nem sequer sabemos os seus nomes. Em toda a história grega e romana, quantos nomes de escravos são conhecidos? Conheço dois… Um é Spartacus e outro Epictetus.” (The Penguin Essays of George Orwell)

Vale destacar que o manejo de substantivos, adjetivos, verbos voltados para denominar pessoas, animais e afetos é ouro na mineração narrativa. Qual é o significado da palavra representação? Uma palavra que significa coisas diferentes em várias áreas do conhecimento humano, como a Psicologia (processo mental), o Teatro (desempenho, performance), as Artes (reprodução em escultura, em pintura, em sons, em instalações, em objetos, em sensações), a Política (a conexão entre eleitos e eleitores), a Filosofia (os conceitos sobre semelhança, imagem, identidade, simulacro, reputação).

Representação é entendida aqui como uma palavra-­fóssil cheia de vestígios de seu percurso na história da humanidade. Representação, já no século 14, significando, ainda que de maneira incipiente, a atuação de alguém (porta-­voz, embaixador) que pela palavra, pelos gestos, pelos objetos, pelo comportamento se colocava à disposição do(s) outro(s) para comunicar algo no contexto de uma relação social, institucional ou de mercado. Uma pesquisa produzida pela Associação Brasileira de Jornalismo Empresarial (Aberje), em julho de 2021, entre os membros do LiderCom -­ grupo integrado por diretores de Comunicação das maiores empresas que atuam no Brasil -­ ampliou o entendimento sobre o ato de representar, na pandemia. Entre os achados da pesquisa destaco a importância “do fortalecimento de uma cultura relacional que fortaleceu a consciência de que todos, independentemente da hierarquia, representavam a empresa diante da sociedade e dos mercados”. E, ainda, a necessidade de “identificar e apoiar as ações de representação do CEO, do C-­Level e da alta gerência, contribuindo para a construção da marca e da reputação”.

O quadro histórico de emergência e incertezas causadas pela covid‐19 apresentou de uma noite para um outro dia novidades, entre elas, desconhecidos territórios de atuação e representação, principalmente no âmbito das relações sociais, comerciais e de trabalho. Essa escala da ressignificação das experiências humanas, dentre elas a de representação, por meio do território estruturado pelas tecnologias digitais, foi quantificada por estudo global realizado pela consultoria McKinsey. Entre 2021 e meados de 2022, empresas de todo o mundo estabeleceram relações de trabalho remotas em um tempo 40 vezes mais rápido do que imaginavam ser possível. A tecnologia da comunicação digital assumida como sobrevivência e oportunidade pelas empresas rompeu com a tradição da representação tradicionalmente exercida por poucos (os porta-vozes), que veio do medievo, atravessou o tempo moderno e transformou todos – do porteiro ao presidente da empresa, “de pê a pê” -­ em representantes da identidade, dos produtos, das causas e dos propósitos, em um horizonte de informação global.

Antropologia digital e a fogueira eletrônica

No ambiente da pandemia de covid­‐19, a ressignificação do ato de representar se deu dentro de uma antropologia digital de emergência, que organizou a comunicação da empresa com a sociedade, com o mercado e com públicos estratégicos. Por meio de novos rituais de consumo, de produção e de circulação de informações, teve o objetivo, no primeiro momento, de reagir e posicionar as empresas, seus serviços, seus produtos, suas marcas e suas reputações diante de uma inédita ameaça às suas existências.

Entre as características dos novos rituais da informação, destaca‐se a centralidade do smartphone e de assemelhados, alavancada por atributos como a conveniência (o tempo todo, em qualquer lugar, ao alcance de nossos sentidos). Um meio de comunicação pleno como extensão do ser humano, lembrando Marshall McLuhan. A nova ritualização da informação produziu uma comunicação em campo expandido, em seus aspectos de consumo, produção e circulação, que se efetiva no diálogo entre muitos atores, principalmente se os seus temas possam gerar inúmeros pontos de vista, controvérsias e até conflitos. Exemplos do que falamos estão nas novas formas de alimentar, locomover, amar, divertir, liderar e até brigar proporcionadas por essa “antropologia de um ponto de vista do smartphone”.

A fogueira pré-­histórica tinha o poder de gerar o ritual da comensalidade -­ a reunião que separava o homem em um tempo e um espaço especiais para a delícia de comer, beber e conversar. Em tempo de incerteza, riscos, medo e luto, as fogueiras eletrônicas ativadas em todos os tipos de telas e plataformas digitais tiveram o poder de reunir as altas direções e gerências com dezenas, centenas, milhares de empregados, em torno da viabilização de objetivos de negócios, mas também para ressignificações de festas, de marcos e das perdas materiais e humanas.

O poder de representar, quando efetivo, quando aberto também para os “inferiores hierárquicos”, transformou‐se em liderança. Liderança aqui significada como uma habilidade humana, baseada na capacidade genuína – em um ambiente de medo, de incertezas e de luto –, de conversar, de estabelecer convívios, enredar pessoas em torno de objetivos e causas, de estabelecer tempos e espaços especiais – rituais – destinados ao diálogo e à promoção e consolidação de democracias corporativas.

(*) Paulo Nassar é professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.

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