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Sejamos Racionais

Marcos Lopes (*) | 07/12/2022 08:30

A aula aberta dos Racionais, ocorrida no dia 30 de novembro na Unicamp, foi uma lição no sentido solene da palavra: a transmissão não apenas de uma convicção, mas de um saber arduamente conquistado ao longo de uma vida de estudos. Por esse ângulo, a lição do grupo de rap foi paradoxal porque seus membros não gozaram de uma educação formal de nível superior. Há nisso um desafio à inteligência acadêmica, uma vez que as humanidades foram sequestradas pelas pautas da justiça social, mordazmente apelidada por alguns de “justiça cósmica”. Nessa pauta, a experiência individual é abduzida pelo espantalho da luta coletiva, ficando a enunciação dos problemas sociais restrita à ansiedade de um presente achatado, vocalizado de forma ruidosa.

Nossos rappers realizaram um turning point na aula aberta, levando de roldão toda uma vulgata bem-pensante. É como se nossos alunos aguardassem ansiosamente um Malcolm X ou Steve Biko, mas, no lugar deles, viesse o Mandela depois da prisão. Não que os Racionais estivessem depondo as armas das rimas e os gestos ostensivos da liturgia hip hop. Apenas pareciam registrar que estavam ali como mestres e aprendizes contumazes da vida. E que eram responsáveis por esse mundo adulto que será legado aos jovens.

Como se deu esse turning point na aula aberta? Para compreendê-lo, é necessário entender a divisão do evento em três partes fundamentais.

Uma primeira parte da aula era, nas palavras da anfitriã, uma surpresa para os Racionais. Um conjunto de alunos da disciplina da professora Jaqueline Santos[1] apresentou individualmente sua experiência com a obra do grupo e como isso impactou suas vidas. O testemunho de cada aluno foi uma espécie de mimesis da liturgia das igrejas evangélicas, em que o fiel relata a história de sua conversão (o antes e o depois do encontro com a palavra).

Após a liturgia do testemunho, iniciou-se propriamente “a aula aberta”, a segunda parte do evento. Em uma sequência de três blocos, cada aluno apresentava sua questão para os integrantes do grupo. O método exigia a leitura da e o convívio prévio com a obra, marcando o protagonismo dos alunos no processo de aquisição do saber.

O momento final da aula, a terceira parte, retoma a liturgia inicial, mas agora da óptica da militância política. Tratava-se não de celebrar a transformação individual, protagonizada, inicialmente, pela fala dos alunos, mas, com o dedo em riste para a instituição pública, apontar sua conivência com as supostas condições precárias de trabalhadores terceirizados e o racismo estrutural.

Blue foi durante toda a “aula” o mais samurai de todos, ao provocar respeitosamente as convicções dos alunos e, com uma serenidade felina, escoar a torrente de emoções despejada pelos jovens. Nos minutos finais, ele aconselha os estudantes a respeitarem seus professores se desejam tomar os Racionais como modelo. E, ao responder a uma aluna que denunciava o racismo estrutural na Unicamp e os supostos ouvidos moucos da Reitoria, Blue, com simplicidade e contundência, como alguém tomado de um realismo moral, disse algo nestes termos: “Aqui dentro não te compreendem? Lá fora também não. Agarrem essa oportunidade. Foco no dez, não no nove e meio”.

Esse conselho do rapper é o que nós professores nos envergonhamos de dar aos alunos. Talvez porque não acreditemos mais no lugar simbólico que ocupamos. Nossa absolutização do relativo produziu uma tibieza moral em nossas práticas pedagógicas ao ponto de nos desculparmos por aquilo que estamos ensinando. Nossas várias aspas para os cânones, para os mestres do passado, e nosso entusiasmo com a última teoria decolonial saturam o espírito dos nossos jovens, que já absorveram o páthos desconstrutor pela sua diluição midiática. Alguns nos deixam com a sensação de que perderam seu tempo conosco; outros, optam pela militância; e alguns tentam o arrivismo acadêmico. Sempre há aqueles que resistem heroicamente, pagando o preço do martírio do estudo disciplinado.

Feitas as contas, perdemos todos. Perdem os desiludidos porque tomam a parte pelo todo; perdem os militantes porque acreditam que a universidade é o lugar da redenção social e, à medida que envelhecem, descobrem que não é; perdem os arrivistas porque haverá um momento em que a graça da ascensão será acompanhada da vertigem da queda. É triste acompanhar a estrela cadente que se satisfaz com a memória de seu nome na lápide de um pavilhão docente, no retrato de um museu imaginário ou nas prebendas institucionais.

O álbum Sobrevivendo no inferno, dos Racionais MC’s, marcou a minha juventude. Com interesse renovado, ouço rap desde a década de 1990, mas não pelos conteúdos que, por exemplo, o movimento negro diz existir na obra. Os militantes desse movimento, principalmente aqueles que hoje estão na universidade, subscrevem essa obra como um marco da consciência crítica a respeito do racismo.

É óbvio que o rap cumpre esse papel social, mas isso é insuficiente como justificativa para uma obra artística. A demanda ética das canções dos Racionais não lhe é algo irredutível. Há outras experiências que atendem a esse propósito. Um crente pode alimentar um alto padrão moral, ser exigente com o seu entorno, transformar a si e a outrem. A experiência litúrgica desse homem contém presença (a materialidade das formas e dos gestos) e sentido (a direção e o significado de suas ações). O gesto litúrgico é estético, assim como a performance artística é ética.

A singularidade indomável de uma obra faz com que a crítica profira juízos estarrecedores para o próprio autor... e às vezes até para o público. A crítica que articula consensos interessa pouco. Crítica é conflito permanente e criação. O rap é portador dessas singularidades? O que há nos Racionais que somente suas músicas podem expressar? Minha hipótese para as canções de um álbum como Sobrevivendo no inferno é que experimentamos uma permanente tensão dialética entre o coletivo e o individual, o conservador e o progressista.

Uma aula a respeito de uma obra artística poderia ser uma experiência radical da multiplicidade de valores e singularidades irredutíveis. No Ensaio “A procura do ideal”, Isaiah Berlin argumenta que não há uma única resposta para um problema social que emerge em dado contexto histórico. Cada resolução de um problema produz um outro e não sabemos mensurar ou prever a cadeia precisa das causas e consequências de sua resolução na vida social. Ao invés da utopia, no seu sentido comum, Berlin propõe que aceitemos a pluralidade de valores que enervam uma sociedade. Tolerância e zelo pelas instituições, mantra do credo liberal, poderiam ser virtudes caras ao debate público, ao que eu acrescentaria uma outra: confiança. Por incrível que pareça, é essa a lição que, em dado momento, na aula aberta do dia 30 de novembro, Mano Brown oferece ao público jovem: sejamos racionais e, por que não, prudentes liberais-sociais.

(*) Marcos Lopes é professor doutor do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) e coordenador da Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp

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