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Uma experiência com autismo no confinamento

Edu Mancebo (*) | 12/04/2021 07:34

Em algum lugar, no distante passado de abril de 2020…

“Hoje é o dia 41, então acabou a quarentena, certo, professor Edu?”, pergunta-me um aluno, agora em nossa nova modalidade de encontros on-line. Sua conclusão nos apresenta uma das características relacionadas ao TEA – Transtorno do Espectro Autista, a tendência para a compreensão literal; interpretar as falas ao pé da letra. “Mas, como assim, letra não tem pé!”, diria ele…

O *DSM define o TEA como uma série de quadros resultantes de transtornos do neurodesenvolvimento, daí o conceito de espectro; diferentes níveis de desempenho e intensidade de prejuízo (leve; moderado; severo) na interação social, comunicação e comportamento dos indivíduos. Vamos abordar aqui os casos leves, chamados de funcionais.

O tema do isolamento social nos remete especialmente ao caso dos autistas. Após quarenta dias de reclusão, como estariam eles se sentindo confinados com suas famílias? Para além da percepção pessoal de minha experiência dos últimos vinte anos na abordagem como educador e professor – acompanhando diariamente crianças, adolescentes, adultos e seus familiares – surgiu a ideia de conversar com essas famílias e seus filhos, em diferentes faixas do espectro, cursando desde o ensino fundamental até a universidade ou mesmo já inseridos no mercado de trabalho.

As famílias e a reclusão

As entrevistas revelaram diferentes dinâmicas de acomodação à forçada quarentena, uma possível identificação em dois grupos familiares:

• Um primeiro grupo, representado por famílias que estavam unidas mais pela organização espacial do que por um núcleo sólido de relacionamentos, encontra agora maior dificuldade na convivência diária num mesmo espaço. Desconhecem “aqueles” com quem agora devem se relacionar continuamente. Os pais solicitam às escolas que ocupem seus filhos o máximo de tempo possível. Os filhos se trancam no quarto. A convivência intensa e extensa é muito difícil.

• Outro grupo, representado por famílias onde já havia espaço para diálogo nos relacionamentos e atenção com as necessidades dos filhos, com melhor adaptação. Conseguem lidar melhor com os imprevistos, as novas realidades, e contam com maior flexibilidade para adotar novas condutas e comportamentos, tornando a convivência mais harmoniosa. Procuram viver um novo dia por vez.

… retornando ao tempo presente, abril de 2021:

Passado um ano de pandemia, o cenário se tornou mais complexo, pois os dois grupos familiares originalmente identificados se subdividiram entre os que respeitam ou não as regras e orientações do confinamento.

A literal impressão inicial associada aos autistas de que a “quarentena” deveria terminar em 40 dias estendeu-se para quase todos; a angústia da falta de perspectiva, uma interminável sensação de que em breve tudo deveria voltar ao normal, mas quando? Estamos presos num ciclo “Transitório-Permanente”, alternando períodos de abertura e fechamento.

Naquele primeiro grupo de famílias que já encontravam dificuldade na convivência diária num mesmo espaço, a situação foi ficando tipicamente insuportável com o passar do tempo. A pressão interna foi aumentando e estas representam boa parte das famílias que passaram a desobedecer as regras de confinamento, saindo de casa, indo para as ruas, praças, festas e aglomerações.

Muitas das famílias que inicialmente tinham se adaptado melhor à situação de novas regras e restrições, procurando viver um novo dia por vez, a esta altura já estão também exauridas. A contínua e grande convivência em espaço reduzido intensificou emoções envolvidas nos relacionamentos, mas seguem, em grande parte, respeitando as orientações restritivas da reclusão.

Em ambos os casos, para o autista a transgressão do confinamento representa fonte de ansiedade e irritação, um paradoxo: não consegue compreender por que as pessoas voltaram a circular se a pandemia não acabou; considera que não seja justo ele permanecer trancado enquanto outros passeiam normalmente.

No entanto, racionalmente compreende que ele deva continuar isolado e mantém esta postura.

Após doze meses de reclusão, não foram muitas as famílias que conseguiram aproveitar a oportunidade para se transformarem, num movimento de maior convivência e reconhecimento mútuo.

O entorno

O cenário mais amplo encontrado mostrou autistas sentindo-se acolhidos e valorizados pelos familiares, menos ansiosos ou angustiados, e integrados às rotinas das tarefas domésticas! A explicação para este aparente paradoxo talvez se encontre nas atuais condições de contorno, que acabaram por favorecer a situação no advento da reclusão.

“… adorei que agora meus pais estão trabalhando em casa.
Passo o dia inteiro ao lado deles e ajudo em muitas coisas.”

Estas famílias já estavam habituadas à escuta das necessidades especiais de seus filhos, ao cuidado, em compreender seus comportamentos cotidianos, conduzindo à união e à paciência.

“… meu novo braço-direito nas tarefas de casa:
arruma seu quarto, passa aspirador, ajuda na cozinha.”

“… agora que estou trabalhando em casa,
acabei me aproximando muito mais de meu filho;
passamos boa parte do dia juntos:
Trabalho e estudo convivendo lado a lado.”

Seus pais e irmãos também estão recolhidos em casa, trabalhando em home office ou estudando on-line; o apoio e a participação familiar sempre foram essenciais no desenvolvimento do autista, mas ele agora desfruta de mais tempo e qualidade de convivência com os demais; participa da nova e necessária divisão de afazeres domésticos (os funcionários estão dispensados devido à quarentena) – tendo maior reconhecimento e integração do que antes.

“… meu filho fez toda a diferença na minha possibilidade de
atuação profissional no início da quarentena –
eu não entendia nada de aplicativos de conferência on-line.”

“… à vontade no ambiente virtual,
minha filha até participou de uma live
convidada a falar sobre sua experiência,
no canal do Instagram de uma ONG.”

Muitos têm grande facilidade com o uso da tecnologia, e agora podem assumir um novo e importante papel no núcleo familiar: “consultor tecnológico”. Uma oportunidade de protagonismo no cenário familiar! Eles podem ajudar os demais nesta difícil fase de adaptação ao confinamento, que tem a comunicação com o mundo externo sustentada pela tecnologia – um mistério para boa parte dos pais – e o autista funcional já tem experiência prática em ambas as questões: isolamento e tecnologia.

“… no início ficou nervoso com a quebra forçada da rotina,
mas aos poucos percebeu que poderia continuar tudo on-line,
e agora está achando ótima a situação!”

Rotina e antecipação costumam trazer segurança aos autistas, ajudando a lidar com o inesperado. A imprevisibilidade de acontecimentos ocasionada pela covid-19 atrapalha muito o seu dia a dia. Eles irão logo buscar uma nova sequência cotidiana que lhes tragam de volta o conforto da organização da rotina e da previsibilidade de antecipação dos fatos.

Inicialmente em posição de destaque como “consultores tecnológicos” dos pais na necessária adaptação ao trabalho remoto, muitos autistas – valendo-se da sua característica de manutenção de rituais – tornaram-se “guardiões” dos rituais de obediência aos novos regulamentos e procedimentos nas medidas de prevenção à covid-19 (de fato, muitas destas “novas medidas” já eram anteriormente praticadas por eles, por iniciativa própria).

Alguns, seguindo uma das características do TEA – o foco em um assunto específico – tornaram-se os “repórteres covid-19” da casa, informando diariamente a família sobre as novidades e o andamento da pandemia.

“… ele está aproveitando que agora todos estão na internet
para mostrar seus novos desenhos, músicas e histórias.
Agora on-line, meu filho está até mais desinibido!”

O trabalho com autistas envolve a atuação de equipes multidisciplinares. Jogos lúdicos, produção artística, musical e utilização de aplicativos em computadores e tablets são importantes aliados terapêuticos. Durante a quarentena, diversas destas atividades foram canceladas, por questões financeiras ou por dificuldades técnicas. Outras, no entanto, estão se adaptando ao ambiente virtual e à conexão via internet.

A questão escolar tem sido um dos principais entraves, contribuindo sobremaneira para o cenário atual de conflitos diários e desgastantes para o relacionamento familiar. Ao longo do ano passado as escolas experimentaram inúmeras estratégias de atuação e uso de tecnologia na tentativa de viabilizar o EAD (ensino a distância), mas ironicamente o que se conseguiu até aqui em grande parte dos casos foi que os alunos e estudantes estiveram bem distantes do ensino… Estima-se que em 2020 os jovens regrediram um ano em seu aprendizado e habilidades, e os jovens autistas, dois anos.

No ano passado aconteceu um movimento dos pais solicitando das escolas uma maior demanda diária de atividades on-line para seus filhos. O excesso de tempo em frente às telas e a incapacidade de se aprender desta forma geraram uma reação contrária, com a recusa dos filhos em se conectarem às aulas virtuais ou fingindo que estavam assistindo, ou mesmo simplesmente deixando apenas o computador conectado e voltando a dormir. A família, por sua vez, não se mostra presente para realmente observar o que está acontecendo. É a visão que se tem de “cada um para o seu lado”…

Surgiram inúmeros questionamentos sobre a efetividade e a justiça das metodologias de ensino e avaliação do aprendizado, refletindo nos processos de “recuperações” e retenções no final do ano. Distante de obter sucesso, a situação do ensino a distância será resolvida apenas quando for retomada a possibilidade do encontro presencial, ainda que em uma forma “híbrida”.

“… minha faculdade mudou para o sistema on-line logo no início das aulas,
então nem cheguei a conhecer pessoalmente meus colegas de turma –
fazemos tudo pela internet; para mim, está ótimo assim!”

Relacionar-se com o “mundo externo” é complexo: pessoas desconhecidas, com seus comportamentos imprevisíveis e de difícil leitura e entendimento. Tentar decifrar, compreender as intenções alheias, desde a linguagem corporal até ironia ou sarcasmo, é muito cansativo.

“… na quarentena não estou fazendo as atividades esportivas,
mas agora caminho todos os dias com meu pai,
para levar nosso cachorro para passear.”

O convívio com animais domésticos sempre foi indicado como importante auxílio na compreensão de necessidades e habilidades de socialização, mas assume agora também o papel de “passaporte” para sair de casa diariamente, exercitar-se um pouco e aliviar a sensação de aprisionamento.

“… seu professor já usava a Khan Academy nas aulas via internet,
então pouco mudou nos seus estudos de matemática.”

Frequentar presencialmente a escola era para o autista uma oportunidade – ainda que complexa – de socialização e convívio com seus pares. Neste momento, não há mais esta opção: todos os estudos estão mediados pela tecnologia; cada colega em sua própria casa.

Neste momento seu confinamento em casa, na prática, é muito bem assimilado; um alívio na pressão de ter que sair de casa, livrando-se também de olhares enviesados ou mesmo de bullying. Decididamente, eles não anseiam pelo final da quarentena.

Em alguns casos houve até uma melhora comportamental e acadêmica. Os jovens que sofriam de grande ansiedade social, apresentando muitas dificuldades no convívio presencial, foram beneficiados pela obrigatoriedade do distanciamento social, estando muito satisfeitos na continência do espaço familiar.

“… para mim, está ótimo assim,
não tenho pressa para a pandemia terminar.”

Pandemia e autismo – confinamento ou liberdade?

“… bem-vindo ao meu mundo. Agora vocês vão saber como eu vivo!”

Este contundente e ressentido depoimento de um jovem adulto aconteceu logo no início do período, quando foram divulgadas as regras da quarentena. Um desabafo de quem há tantos anos sofre diariamente, sempre na tentativa de conciliar realidades tão diferentes, de se fazer compreendido; um enorme esforço de adequação ao que os outros lhe apresentam como o certo a fazer, por tantas vezes, em vão.

O “mundo” ao qual ele se refere não é aquele do isolamento pessoal, estigmatizado; é a luta diária para ser aceito num ambiente que não propicia a sua participação, para ocupar um lugar de protagonismo na sociedade.

Imagine-se acordando num país estrangeiro, onde você não compreende o idioma, não conhece os códigos de vestimenta nem de comportamento, tem que sair de sua cama e realizar todas as tarefas cotidianas, sem ajuda, mas com sucesso. Pense em todas as dificuldades existentes para realizar as atividades mais simples, como pegar um ônibus ou o metrô… E no dia seguinte, começar tudo novamente… Exaustivo, não?

Talvez seja este tipo de situação que até hoje vem sendo cobrada do autista, sob o nome de inclusão. Que ele seja incluído a qualquer custo em nosso mundo, que se adapte, comporte-se da nossa maneira, a correta. Ao contrário, incluir pressupõe participar, estar contido; devemos dar voz ao autista, escutá-lo, promover uma via de mão dupla na comunicação.

“… ele está se sentindo bem com nossa companhia, incluído, acolhido…
Agora nós entramos no mundo dele.”

O confinamento está sendo uma oportunidade para o autista receber os familiares em sua realidade diária, apresentar-lhes de forma efetiva as dificuldades e angústias de sua condição. Em compensação, também se aproxima deles, ensinando e compartilhando as estratégias e conhecimentos adquiridos em sua experiência de vida, agora nivelada com os demais. Restrição promovendo integração.

A quarentena nos proporcionou uma oportunidade inédita – e impensável, até então – de que todos “os outros” fomos convidados a conhecer, experimentar e vivenciar a realidade do autista. Reclusos em nossas residências, impedidos de sair, socializar, trocar experiências com outros seres humanos de forma presencial. A grande diferença é que sabemos ser este um momento transitório; terminada a pandemia, em breve retornaremos à antiga liberdade.

Ou não?

Não, definitivamente, não! A pandemia não terminou e ainda não temos a menor condição de saber quando – e se – retornaremos à “antiga liberdade”. Um ano depois, a extensa e intensa convivência familiar revelou-se excessiva. Os tais “outros” em sua maioria não conseguiram suportar a “realidade do autista” que lhes foi apresentada. Em diversas famílias os relacionamentos foram se desgastando e sentimentos como angústia, ansiedade e depressão passaram a ser muito frequentes. Irritação, raiva e violência doméstica infelizmente também fazem parte do cenário atual em muitos dos casos.

Compreensão, união e paciência são agora comportamentos mais raros, encontrados naquelas famílias que já estavam mais preparadas, que estão conseguindo atravessar este período de forma mais estável e menos conturbada.

Na maior parte dos lares o que se constatou neste ano foi uma regressão na autonomia dos autistas, demandando a presença dos pais; aumento da dificuldade na condução das atividades diárias e dos problemas comportamentais (mais frequentes e mais intensos). Crises de choro, aumento da agressividade e dificuldade para dormir.

A insegurança e o medo agora fazem parte da rotina não apenas daqueles que se encontram no espectro, como de todos nós; já não sabemos mais ser este um momento transitório, e ficam em aberto os questionamentos sobre como nos protegermos, quais as consequências e sequelas da covid-19, quando retornaremos às atividades suspensas (serão elas presenciais?) e, sobretudo, quando termina a pandemia…

Será que ela acaba?

Em 2020 iniciamos a participação na implantação de um Centro de Apoio à Pessoa com Deficiência (CAPcD) e um Centro de Atenção Psicossocial Infantil (CAPSi) – um projeto de Cooperação Técnica entre a Escola Politécnica (Poli) da USP e a Prefeitura Municipal de Cajamar – por meio do Escritório de Relacionamento da Escola Politécnica e com as Secretarias Municipais de Educação e Saúde do Município de Cajamar. Este centro é uma entidade pública mantida pela Prefeitura do Município de Cajamar.

Este novo trabalho recém-iniciado, e em conjunto com os profissionais do centro, oferece e permitirá a oportunidade de participação no processo de atendimento e orientação aos munícipes de Cajamar, entre eles os autistas e seus familiares – já identificados como representando uma grande parcela da demanda local de atendimento – viabilizando-se também a possibilidade de diagnósticos e intervenções precoces no autismo.

Importante também destacar que o foco deste relato considerou a intervenção com autistas que podiam desfrutar de um atendimento individualizado, suportado financeiramente por suas famílias. Com esta nova e desafiadora oportunidade será viável conduzir as tratativas com autistas pertencentes a uma comunidade que, de uma maneira geral, é pouco considerada pelos administradores públicos, mas aqui destacada como uma grande inovação no caso da Prefeitura do Município de Cajamar.

Isto certamente revelará uma grande oportunidade de aprendizado com pessoas de classes distintas e necessidades básicas não totalmente atendidas, o que atualmente dificulta o efetivo cuidado com o autista. O centro, a princípio, poderá propiciar recursos tecnológicos simples, que podem minimizar as dificuldades que tais famílias enfrentam com o isolamento, pois na maior parte dos casos as famílias da comunidade pertencem ao grupo considerado de baixa renda, o que as afasta do necessário convívio com o autista.


(*) Edu Mancebo é professor

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