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Beba das Crônicas

Conversa de Bar – Desvendando Clarice

André Alvez | 03/01/2023 08:32

Na choperia Rui Bar Bossa todo mundo bebe, inclusive os fantasmas.

A moça da testa larga, sobrancelhas finíssimas e delineadas, olhos enormes e mãos severas, entrega as duas primeiras taças de chope.

Um gole profundo e o prazer da bebida me faz falar, quase sem sentir:

- Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida.

- Ah, pronto, vai começar a filosofar?

- Não é filosofia, é Clarice.

- Ah, pronto, aquela chata...

- Você não gosta dela porque é machista.

- Você também é machista.

- Sim, como todo homem que viveu a juventude nos anos oitenta.  Mas estou em desconstrução.

- Desde quando?

- Faz tempo. Quando nasceu minha filha, acho...

- Eu lembro de você reclamando de um carro à sua frente, falou que só podia ser mulher no volante.  Quando estacionou, era um marmanjo.

- Sim, eu disse, mas é mais por costume.

- Lembro de você falando que futebol não é lugar de mulher.

- Ah...Falei? Mas veja, eu gosto de vôlei feminino até mais que o masculino.

- Aquela narradora, você fica com a cara de bunda, quer até trocar de canal.

- Não gosto mesmo, mas não é por que ela é mulher, eu acho a narração dela chatíssima.

- Ah, e eu não posso achar a Clarice uma chata?

- Clarice não é chata, a escrita dela está longe de causar tédio.

- E você entende o que ela quer dizer?

- Nem sempre, mas gosto de vários textos dela e...

- E aquele da galinha? Que porcaria é aquilo?

- Não é galinha, é o ovo.

- Pois estou começando a achar que entendo mais de Clarice do que você. Tem o ovo, mas tem a galinha também.

- Tem?

- Tem.  E você uma vez disse que nem dez livros da Clarice podiam superar um único do Graciliano Ramos.

- João Guimarães Rosa.

- Que tem ele?

- Não foi Graciliano que eu disse, foi Guimarães Rosa. Porque existia uma divisão besta antigamente, as mulheres liam Clarice, os homens Guimarães Rosa.

- Ah, é verdade. Agora me lembrei que você disse que não entendeu porra nenhuma nem depois da quarta vez que leu Grande sertão veredas.

- Eu disse isso?

- Disse.

- Bom, digamos que gostei mais de Sagarana.

A moça da beleza estranha traz mais duas canecas de chope e fica por perto, lixando as unhas.

Bebemos ao mesmo tempo, enxugamos a espuma da barba e a conversa retorna:

- Isso até assistir a série Grandes Sertão Veredas na Globo. Lembro bem. Depois que viu na tela, danou a falar de Diadorim, que não era homem, era mulher, algo assim, só lembro que você dizia que existia uma porção de Diadorim em muitas mulheres e...

- Cale-se! Eu nunca disse isso.

- Disse sim, e ainda falou que o Rosa matou Diadorim porque havia criado uma mulher que Clarice jamais conseguiria compor e...

- Que doideira? Eu não disse nada disso.

- Você esquece que sou engenheiro? Nós, engenheiros, temos uma memória privilegiada. Diga então, qual mulher Clarice criou que supera Diadorim?

- Ah, tem muitas.

- Então diga pelo menos uma.

- Olha, eu nunca mergulhei intensamente no universo de Clarice.

- Por quê não?

- Porque prefiro Graciliano Ramos.

- Graciliano? Não seria Guimarães Rosa?

- Não, não. Eu prefiro Graciliano, que a literatura dele eu entendo.

- Mas a Rachel de Queiróz você nunca gostou.

- Só li o Quinze. Achei enfadonho.

- Viu só? Puro machismo.  Ei moça, traz mais duas canecas.

- E você, que nunca leu nada, agora está aí, cheio de falar merdas. Tudo o que você sabe de literatura, fui eu que te ensinei.

- Pois é, ensinou muito bem, eu sei uma personagem da Clarice que talvez supere a Diadorim.

- Qual?

- Macabéa.

- Ah, não diga isso, Diadorim era forte, determinada, morreu lutando. Macabéa uma iludida, desatenta, nem viu o carro ao atravessar a rua.

- Cara...Eu gosto mais da Macabéa.

- Eu gosto mais do narrador do livro.

- Que livro?

- Esse da Macabéa. O nome é A hora da estrela. Aliás, é ele que afirma que o mundo começou com um sim.

- Ele?

- O narrador é homem.

- Mas a escritora é a Clarice, uma mulher.

- Sim, mas veja, quando a gente está escrevendo, somos o que não somos, vamos onde não estamos, tipo isso, entendeu?

- Não. Mas não vou discutir.

A garçonete se aproxima, o olhar crispado, um jeito determinado no gesto das mãos. Coloca as duas canecas de chope diante de nós. Eu agradeço com um ligeiro aceno de cabeça. Ela finge que não vê. Senta mais perto, as unhas ganham esmalte. Vlad a encara, ela recua por um segundo, mas logo gira o corpo e se coloca bem diante de nós. Tem um brilho estranho no olhar e a voz forte, de derrubar leões:

- Não tive como deixar de ouvir a conversa de vocês.

- Ah, é?

- Que bom.

- Bom nada, estou é muito incomodada. Sou leitora da Clarice e se vocês não colocarem a Joana do romance  Perto do coração selvagem nessa conversa, juro por tudo que é mais sagrado, vou meter açúcar no chope de vocês e obrigá-los a beber num gole só.

A moça saiu de perto, deixou o assombro na nossa cara, foi até a chopeira, enchendo aos poucos os copos, uma mão na alavanca, a outra alisando o pote de açúcar, o olhar fulminando nós dois.

- Diga que você leu.

- Li faz tempos. Sei lá, odiei a tal Joana.

- Ela vai colocar açúcar no nosso chope.

- Viu que ela tem a sobrancelha igual da Clarice?

- Os olhos grandes também.

- E agora?

- Sei lá, melhor responder coisas boas. Eu tenho medo de mulher assim.

- Na real, eu também.

- Será que ela é de escorpião?

- Que tem a ver?

- Eu sou de leão, ué. Combina com escorpião.

- Você acredita nessas coisas?

- Acredito.

- Isso é coisa de mulher.

- Tá vendo, você é machista.

- Mas estou em desconstrução, já disse.

-Ela não tem aliança, deve ser solteira. Me amarrei nesse jeitão mandão dela.

- Nem tente fazer graça. Você não faz o tipo dela.

- Como você tem tanta certeza?

- Ela é leitora de Clarice, você é macho escroto.

- É...pode ser. A gente não devia falar sobre literatura. Se o assunto fosse futebol, ela não se metia.

- Será? Começam assim, daqui uns dias estão narrando futebol.

- Tá vendo? Você é muito machista.

- Em desconstrução, em desconstrução...

- Dá uma googlada aí, vê a tal de Joana. Na próxima chopada não vamos falar de literatura, vamos falar de coisas que a gente gosta: futebol, filmes, mulheres.

Mexo rapidamente no celular:

- O universo de Clarice é muito grande.

- A gente tem que reclamar com o Rui depois dessa.

- Que Rui?

- Aquele ruivo, dono desse boteco.

- Ah, ele não é o dono, é o gerente. A dona é uma mulher.

- Mas o nome do boteco não é Rui Bar Bossa?

- É...Mas a dona é uma mulher, ela que teve a sacada do nome e fez o design todo.

- Detesto design.

- Eu sei.

- Bom, ele é o gerente, vamos reclamar com ele. A dona eu não vou falar nada não.

- Nem eu.

A garçonete se aproxima:

- Ela está vindo, fale alguma coisa.

- Eu, eu...

- Fala, fala!

A moça não diz nada, coloca as duas canecas de chope diante de nós. Do lado, o pote de açúcar. Nos encara, o par de sobrancelhas finas ganhando vida na testa larga, os olhos grandes feito o sol, como se fosse um juiz antes de dar a sentença.

Senti um vento frio cobrir o meu corpo. Um vulto, o silvo do vento, e a voz foi saindo:

- Cada criação desse instante que nos serpenteia vem do eu feminino que existe em todos nós. A vida nada mais é que uma verdade inventada, mas essa loucura não nos cega. A flor, a pétala, eu lambo o seu néctar e tudo então tem real significado. É quando a cruel insensatez humana ganha contornos de realidade e diante de um ser minúsculo se ergue a fortaleza com contornos cor de rosa. Eu me rendo. Meu amigo se rende. O feminino nos vence sempre, porque é um mergulho no eterno desejo de continuar existindo. Eu não sou, você é, nós nunca seremos.

Ela sorriu, convencida.

- Você, de alguma forma, compreendeu Clarice.

E foi para longe, levando o pote de açúcar e um ar de triunfo.

- De onde você tirou isso? Tô arrepiado até agora.

- Sei lá, bateu um vento gelado e foi saindo. Acho que é por conta da desconstrução.

- Vou chamar o Uber.

- Sem saideira?

- Sem saideira. Se ela for de escorpião, logo volta querendo saber mais...

Damos o último gole. Meu amigo olha sorrindo para o celular e depois me encara:

- Acho melhor você desconstruir de uma vez o machismo.

- Por quê?

- O uber.

- O que tem?

- É uma mulher...


André Alvez

 

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