Minha alma cheira talco... mas agora talco é droga
Vi o Brasil pela TV americana. Estava esquisito, sangrando feito cascata, à espera de um milagre. Outra língua, outra gramática em voz inumana para falar que estamos matando crianças em idade de jardim de infância. Quis me indignar, concluir o raciocínio de que temos aprendido com eles, mas não houve tempo porque mudaram o assunto. No mesmo tom de voz anunciaram que não vão mais fabricar talco. Talco agora é uma droga (descubram!).
Durante um lapso elementar de tempo, escorreguei no pó branco rumo a um passado distante. Minha avó tinha cheiro de talco, ah como era bom. Talco da Avon, Christian Gray, da Johnson... minha mãe tinha vários deles sobre a penteadeira. Vinham numa embalagem belíssima, com uma esponja branca macia para ser esponjado no corpo... eu me refestelava no cheiro... Mas não posso me distrair com essa nostalgia sabendo que brasileiros violentos apertam gatilhos contra as têmporas das crianças.
Não foram apenas gestos, foram também mortes. Várias mortes. Nesse mesmo espaço curto em que se fala de uma coisa e depois de outra, as crianças perderam a vida. Tudo tão rapidamente como a sequência da notícia. Vem o cheiro do talco, vem o pó que deixará de existir e já ninguém se lembrará de uma coisa e nem de outra.
A TV brasileira também não mastigou o assunto das crianças assassinadas. Escutamos pálidos ecos de um quase inédito acontecimento em que ninguém quis, nem quer se demorar na matéria porque a descrição dói sinesteticamente.
Dói nas pontas dos dedos, dói na língua, dói nas pupilas. Além disso, estamos todos convictos, ou quase, de que não se deve dar projeções para bandidos quando estamos tentando enveredar para um futuro de sonhos. Postiços é verdade, mas voltamos a sonhar. As misérias já estão asseguradas pelo passado recente.
A esperança já está desintegrada, esparramada feito talco ao rés-do-chão, e a fé sendo vendida como um artefato industrial. Resta-nos o papel da resistência contra estas e outras milhares de sandices fabricadas pelas bocas murchas e insensatas do capitalismo e oportunismos bélicos, entre estes a fake news e neofascismo.
Estamos num vazio quase escuro, o povo se comprime numa zona de segurança a esperar o futuro acontecer. Outros desvairadamente se juntam em lugares onde se possa tricotar algum tipo de proteção. Vistos de fora, somos mesmo estranhos, lutamos como sonâmbulos contra o fogo que acendemos.
De fora somos um povo que ensina a garotada a atirar e depois lamenta as desgraças como se não tivesse culpas. Compramos armas de brinquedo (simulacros de filmes americanos, sim!) para crianças que ainda deveriam usar talco no bumbum. E depois ouvimos, dos próprios estadunidenses que somos um povo violento.
De fora somos vistos como povo, não importa a ideologia que carrega a identidade da permissividade, da grosseria, da falta de um sistema educacional eficaz e de outros rótulos promíscuos que nos querem imputar por desígnio.
Mas aqui dentro, somos essas crianças que se foram quando estavam na escola. Somos esses olhares curiosos, cheio de perguntas, somos esses que estão morrendo diuturnamente, somos essa poesia subjacente, além de nós, apesar de nós, dentro dessa geografia pequena do espaço de aprendizagem que se chama vida.
Vida imediata, urgente, frágil e já com cheiro de talco vencido. Somos parte dessa superfície larga, mas andamos dependurados, ameaçados, esquivando-nos pelos cantos, pelo centro, pelo avesso, desmanchando-nos em nossa cor, virando talco sem cheiro.
Os dias têm sido difíceis nessa tentativa de não nos perdermos nas figuras de morte escatológica, não nos perdermos na marginalização indigna dos que não fazem parte de nada, não sermos devorado pela caçada antropofágica dos cães sociais ou sermos calado no estreito safári doméstico sentimental que nos deixa nessa observação caótica de tudo e sem forças para lutar por nada.
Já fomos melhores? Nós, as gerações que fomos criadas com talco espalhado pelo pescoço para disfarçar o cheiro das golfadas promovidas pelos reveses da tortura não temos o distanciamento necessário para apurar se já fomos melhores. Podemos dizer, no entanto, que já estivemos melhores.
Já fomos vistos como melhores. O Brasil já foi mostrado lá fora em um desenho mais colorido, mais verde, com menos sangue, menos preconceitos e sem mortes de crianças como desafios sombrios de dark web.
Hoje nossas fragrâncias nos estão tonteando. Somos quase inorgânicos. Platinadas estátuas de talco em irreversível embranquecimento. Em breve seremos um povo sem talco e sem o cheiro insubstituível da inocência.
Em seu lugar, armas que cheiram à brutalidade. Pais que enxergam o mundo pelas sombras das cavernas, enquanto os diabos incendeiam o mundo do lado de fora. Platão, a partir de algum lugar, deve estar de cócoras olhando o avesso do mundo, esse campo aberto para se pelejar contra os moinhos de talco e apoiar as armas de fogo. Amanhã poderemos ser um país pálido, sem sangue, sem talco e sem crianças. Conforta-me apenas a lembrança, cada vez mais distante, do cheiro de talco impregnado na alma das pessoas.
*Lucilene Machado é escritora e professora na UFMS