2020: o ano em que o mundo parou, mas ninguém tirou férias
Médicos trabalharam como nunca, eventos foram cancelados, férias adiadas e a vida foi pautada por decretos do Diário Oficial
O ano bissexto prometia até um dia a mais de 2020. Eram 366 novas oportunidades. Janeiro começou, fevereiro teve Carnaval, março trouxe, de fato, a pandemia para Campo Grande. De repente, todos os planos ficaram suspensos, e a vida do campo-grandense passou a ser pautada pelos decretos publicados no Diário Oficial de Campo Grande.
Foram publicados pelo menos 147 decretos e resoluções com suspensões ou regras para o funcionamento de estabelecimentos, além de toques de recolher, sendo o primeiro no dia 16 de março. Nos últimos seis meses, o Diário Oficial de Campo Grande teve 277 mil e 192 acessos e mais de 26,8 mil novos usuários. 2020 foi o ano em que o mundo parou, mas ninguém tirou férias. Médicos trabalharam como nunca, eventos foram cancelados, viagens adiadas e projetos ficaram em stand by.
Na primeira matéria de retrospectiva do Campo Grande News, os depoimentos são de quem viveu o ano que parece não terminar dia 31 de dezembro, visto tudo que ficou no ar.
Sem férias - Há 30 anos na Time Tour, uma das agências de turismo mais tradicionais de Campo Grande, Juliano Berton, de 47 anos, não foi à Disney este ano. A excursão feita pela agência todos os anos em julho foi adiada. Quando a pandemia deu as caras no Brasil, em março, a agência tinha a expectativa de que até julho a covid-19 poderia estar sob controle, mas em maio clientes e empresa bateram o martelo na decisão de adiar a viagem.
Não houve grandes questionamentos à agência, visto que todo mundo entendia que se tratava de um fato mundial. "Claro que tem a frustração pela viagem não acontecer agora, mas é muito melhor você viajar tranquilo sabendo que vai aproveitar", acredita.
Há décadas trabalhando com turismo, nem Juliano nem ninguém imaginava que o coronavírus atingisse o status de pandemia e paralisasse o mundo. "Já tivemos outros tipos de situações, mas eram menores e localizadas em determinados países, mas nunca uma questão global assim. Agora, olhando para trás, temos dimensão do tamanho do estrago que fez", avalia.
O ano em que todo mundo parou, mas ninguém tirou férias teve como testemunha Juliano.
"Todo mundo cancelou o que estava programando e aqueles que compraram, foram programando para o ano seguinte. Ninguém viajou, os que conseguiram foi entre setembro e outubro, quando a pandemia parecia ter dado uma acalmada, mas este ano não tinha como fazer nenhum tipo de viagem de porte internacional", frisa Juliano Berton.
Sem formatura - Médica, Fernanda Almeida de Oliveira, de 24 anos, esperou seis anos pela sonhada formatura. Na virada para 2020 ela acreditava, como muitos, que este seria o ano dela. "Achava que ia ser o sonho, um ano muito bom, cheio de alegria, mas aí veio a covid e a gente ficou na incerteza para formar, se íamos conseguir na data certa a tempo de fazer as provas de residência", conta.
Os planos para 2020 eram, além de estudar para as provas, aproveitar o último ano de faculdade, incluindo as festas e os colegas. Em maio, as idas ao hospital foram suspensas, e eles tiveram de começar a fazer teleatendimento. "Deixaram de receber os alunos, só podia entrar quem já era médico e residente. Começamos a ter aulas a distância de junho até agosto", recorda.
A festa de formatura foi primeiro adiada, para depois ser cancelada de vez. Depois de seis anos de estudo, Fernanda se contentou em receber o diploma usando máscara, sem abraços apertados e com número muito restrito de convidados na colação de grau oficial. "Eu queria muito ter uma festa de formatura. Não tive festa de 15 anos, não fiz formatura de 3º ano de Ensino Médio por opção minha, e a formatura da faculdade eu não tive e nunca vou ter", se conforma.
No meio de tudo isso, a médica perdeu familiares para a covid.
"Perdi um tio da minha mãe, perdi meu padrinho de covid quatro dias antes da formatura e foi muito triste para mim ter que ir na festa e comemorar alguma coisa, que às vezes eu achava que não tinha o direito de comemorar", afirma a nova médica Fernanda.
Sem escola - Foi difícil explicar para os filhos que, mesmo sem escola, ninguém estava de férias. Na casa de Andreia e Pedro, por exemplo, a forma encontrada pela mãe foi a de se vestir de Professora Jackeline.
"Ele entendeu, porque como já assiste notícias e é muito ligado em tecnologia, sabia que era a época de ficar em casa para não pegar covid", conta a mãe de Pedro Otávio, Andreia Rocha Diniz, de 40 anos.
Aprender e realizar as tarefas da escola em casa até que seguiu bem, mas quando as férias, pelo menos no calendário escolar, chegaram, Pedro sentiu muito de não ir para a praia, viagem já tradicional da família e também não poder ir jogar futebol.
"Nas férias é bem complicado, porque ele gosta muito de ir pra praia, fora os passeios que ele fazia e parou como futebol de campo e ir na praça. Ele tem muita consciência, mesmo sendo novinho, não vai à casa dos avós com medo de estar assintomático e passar covid para eles".
Em 2020, Pedro também não terá festa aniversário ao lado dos amigos pela primeira vez. Ele vai fazer 10 anos dia 29.
"Foi um ano bem estranho, difícil e complicado, porque a gente passou o ano todo em casa, estudando em casa, ficando em casa. É tudo a mesma coisa, não parece o mesmo mundo", observa o menino.
Sem casamento - Empresária, Vivian Jorge Braz, de 29 anos, programava um 2020 de casamento, viagem pela Europa e gravidez. No entanto, com a pandemia se viu fazendo o contrário disso: cancelou a viagem, adiou a festa, mas pelo menos realizou o sonho de viver a gestação.
Até então, Vivi não estava pronta para falar do casamento, tão sonhado e que teve de ser adiado.
"A festa seria em abril, bem quando estourou o lockdown que não tinha medida de distanciamento, nada. Era lockdown mesmo, aí ficamos em standy by e não remarcamos o casamento", conta. Os fornecedores foram pra lá de atenciosos e compreenderam o momento, a festa segue em aberto e pode acontecer em 2021 e até mesmo 2022, revela Vivian.
Com casa montada, Vivi e o noivo, Helton, resolveram se casar no civil, em uma cerimônia pequena, apenas com pais e irmãos e a benção das alianças na presença de oito pessoas. "Nós estávamos com quem a gente mais amava", resume.
A gestação, um dos sonhos de Vivi era de engravidar antes dos 30, aconteceu em julho e a imagem que ilustra a matéria é de outubro, quando descobriram que o bebê é menino.
"Me vi tendo de ser resiliente e acabei me surpreendendo com o meu 2020. Meu sonho era me casar, e eu me casei no civil, sem festa, mas fui abençoada pela minha mãe que é pastora e engravidamos".
Trabalhando como nunca - A afirmação de que 2020 foi o ano em que o mundo parou, mas ninguém tirou férias não só é confirmada pela médica e diretora do Hospital Regional de Campo Grande, Rosana Leite, de 46 anos, como é reforçada. "Trabalhamos como nunca, três, quatro vezes mais, de domingo a domingo", diz.
À frente do Hospital Regional, considerado de referência no tratamento da covid-19, a médica Rosana Leite não esconde o peso da missão.
"Foi um desafio, eu, particularmente, sempre trabalhei muito mesmo, mas foi um ano de trabalho intenso, porém o que mais me chocou foi a insensibilidade da população. A falta de compaixão e solidariedade que me deparei neste ano foi muito maior do que o trabalho", desabafa a diretora.
Rosana conta que apesar de ver pandemias nos livros de Medicina, não imaginava ser coadjuvante da covid-19, na qual ela não só precisou planejar como também executar medidas. "Apesar de ter noção do que seria uma pandemia, aquela história de planejar e executar é uma coisa e a hora de operacionalizar é bem diferente".
Ainda em janeiro, quando passava pela transição entre Ministério da Educação para assumir o Regional, a médica recorda dos alertas do então ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta. "Ali já começamos a ficar preocupados e preparados. Nosso planejamento foi publicado em março. Nós imaginamos que seria algo como uma dengue. Passamos pela primeira onda, só que agora, nesta segunda onda, apesar de todo o planejamento, o que está acontecendo é a gravidade dos casos, isso que nos deixa mais preocupados. Parece que são duas doenças diferentes vividas no mesmo ano", explica a médica.
Para 2021, Rosana quer, além da saúde, ver brotar empatia nas pessoas.
"Que Jesus desculpe a sociedade, meu desejo é que as pessoas tenham mais compaixão e solidariedade, só isso", clama.