Corredor de idiomas, MS fala mais de 10 línguas, muitas sob risco de sumir
Coloridas e cheias de tom, muitas línguas fazem do Estado local privilegiado, apesar da desvalorização do “falar”
Língua. Lengua. Îîõra. São apenas três formas diferentes de anunciar o falar, buscadas do cesto lotado e diverso das línguas presentes em Mato Grosso do Sul. A última, palavra da etnia Ofaié para “língua” corre o risco de desaparecer. E não está sozinha. Tic tac. A cada batida do ponteiro no relógio que corre e trouxe Mato Grosso do Sul para os seus 42 anos nesta sexta-feira (11) é também uma corrida contra o tempo para tentar salvar um dizer que pode nunca mais ser ouvido.
Mato Grosso do Sul é um corredor de línguas. Fronteiriço e passagem de muitos migrantes, a língua que se fala, muitas vezes viajou quilômetros para chegar até a boca de quem vive por aqui. Antes mesmo que o primeiro colonizador chegasse, chamasse essas terras de Mato Grosso e em 11 de outubro de 1977 de Mato Grosso do Sul, a diversidade já era enorme.
Além do português e do "portunhol" da frontreira, ao menos oito línguas indígenas são faladas no Estado, sem contar os inúmeros dialetos e variações. Tic-tac. O tempo que passa leva embora, aos poucos, os anciões, últimos falantes de línguas como o Ofaié e Guató, hoje em risco de extinção, mas também adiciona tons nas línguas que ainda sobrevivem. Todas travam batalha desigual com a língua dominante: o português.
O corredor
Centro da América Latina e periferia do Brasil, a localização pode parecer desfavorável economicamente - sem saída para o mar e longe dos grandes polos industriais -, mas o exato espaço que Mato Grosso do Sul ocupa no mundo faz desse Estado quem ele é.
Ouvir mais de cinco minutos de conversa em outro idioma é quase raridade nas ruas de Campo Grande. No entanto, expressões, referências e até algumas frases longas de pelo menos cinco línguas diferentes são encontradas em uma tarde de caminhada no centro da Capital.
O corredor de idiomas começa às vezes na condução que se toma para ir ao trabalho ou em cada cruzamento. Fronteira do Brasil com o Paraguai e a Bolívia, o estado é itinerário obrigatório de mochileiros e artistas de ruas de toda a América Latina. Por isto, o espanhol já soa familiar para quem vive aqui.
As similaridades entre português e espanhol não necessariamente tornam a comunicação simples. Há dois anos no país, o equatoriano Antônio Amagona ainda sente dificuldade em se expressar. “Falar é mais difícil. É mais simples escutar”.
O Estado não é destino fixo em sua vida, assim como não é o ofício. Temporariamente, Antônio trabalha como vendedor ambulante nas ruas do centro, mas o que ele gosta mesmo é de viver das composições tiradas da flauta. Afinal, música é idioma universal.
Se para os vizinhos o idioma já representa barreira, para quem veio de outro continente é ainda mais difícil. O chinês, Fu Wang, 30, teve como professores de português os clientes e funcionários do comércio localizado na Rua 14 de Julho.
Seis meses depois de chegar a Mato Grosso do Sul, comunicar-se na língua oficial do país que escolheu morar não é um desafio tão grande. “Para mim o português é muito parecido com o inglês, que eu já conhecia”, explica ele, algo que para os brasileiros pode parecer incomparável.
Frustra-se um pouco quem tenta achar similaridades entre o chinês e o português. Wang conta sobre o dia em que os colegas gastaram saliva para explicar o que era terremoto. Segundo ele, não há palavra aproximada no chinês. O esforço dos mais jovens em se familiarizarem com outras línguas, no entanto, não é o mesmo entre os mais velhos. “Os de mais idade tem mais dificuldade em falar o português”, relata o comerciante.
Gerações anteriores do continente asiático também cruzaram o Atlântico para viver no estado brasileiro constituído na década de 70. No caso de Neuza Miyuki Ikeda, 54 anos, e Renan Kanashiro, 32 anos, proprietários de um estabelecimento comercial no Mercadão, a imigração começou nos bisavôs.
Tantos anos em solo brasileiro tornaram a língua japonesa item para se usar apenas em caso de necessidade. A intensidade na utilização do idioma ocorreu apenas nas temporadas passadas no Japão. Ao voltar para o Brasil, o vocabulário ficou restrito ao âmbito familiar e as referências necessárias aos negócios. “Hoje falo as palavras principais. Usamos em caso de necessidade. No dia a dia não usa mais. Quem realmente falava, já faleceu”, explica Neuza.
A comerciante Micket Moumiergi veio da Síria ainda pequena. A proximidade com familiares do país fez da língua árabe elemento quase obrigatório na rotina, mesmo para quem está no Brasil. “Falamos o árabe todos os dias em casa. Procuramos não esquecer e dar continuidade a língua com as crianças. Eles nos veem falando e demonstram interesse em aprender”, explica.
A prática diária do idioma acaba tornando-se atração para funcionários e clientes dos estabelecimentos administrados pela família. “Tem horas que estou falando com minha irmã no telefone e quando percebo já estou falando em árabe”, relata.
O falar escondido que pode desaparecer
Fala-se de índios quando se fala em Mato Grosso do Sul. Estado com a segunda maior população indígena do Brasil, por aqui, apesar de invisíveis, esses povos originários podem ser vistos na culinária a base de milho e nos nomes de muitas cidades que buscaram na língua guarani uma identidade.
Há dois troncos linguísticos indígenas no Brasil: Tupi-Guarani e Macro-Jê. Mato Grosso do Sul tem línguas dos dois. Há Guarani Kaiowá, Guarani Nhandeva, Terena, Kadiwéu, Kinikinau, Ofayé, Guató, e ainda, o Kamba, etnia pouco estudada, ligada aos Atikum do Nordeste. É o que explica um dos únicos estudiosos de línguas indígenas em Mato Grosso do Sul. Linguista formado na USP (Universidade de São Paulo), doutor pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e professor da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) em Campo Grande e Aquidauana, Rogério Vicente Ferreira trava luta quase solitária para valorizar essa diversidade.
“As mais faladas são Guarani Kaiowá, Terena e Kadiwéu. O problema é que as línguas estão caminhando para extinção”, fala, pesaroso.
As do tronco Macro-Gê, Ofaié e Guató, já estão quase extintas. Os Guató vivem em Corumbá e na aldeia Uberaba em ilha distante no coração do Pantanal, além de, também, viverem em terra recém-demarcada no Mato Grosso. Em Mato Grosso do Sul, o professor estima que existam, apenas, 5 falantes. Os Ofaié que vivem em Brasilândia estão em situação ainda mais perigosa: 3 falantes, os únicos do mundo.
É desafio pensar o que acontece com uma cultura quando uma língua não é mais ouvida. O que fica da língua falada, entre os povos, e dos povos, na língua falada, é mais fácil compreender. Mas o que fica nos povos, da língua que não se fala, é memória que vai indo, aos pouquinhos, embora.
Rogério tentou com muito esforço contribuir para que os Ofaié não sejam um povo sem língua.
Desenvolveu e distribuiu um dicionário que hoje já corre nas mãos dos aproximadamente 70 moradores da aldeia. É o único instrumento, hoje, para fazer acordar a língua dormente dessa etnia.
“Quando comecei nessa questão de fazer o dicionário, comecei a perceber o grande problema que é: eles não lembram mais coisas importantes da língua. Você fala assim, por exemplo, para eles: ‘como fala esse tipo de árvore?’. Já não lembro mais. O resgate é muito complexo porque você tem que fazer com que os falantes, que são poucos, utilizem a língua o tempo todo e o resgate você não começa pelos adultos, você começa pelas crianças. A escola teria que ter aula de língua estrangeira pra eles mesmos e não tem material, nem eles, e em nenhum lugar. Isso é um trabalho gigante. A secretaria de educação tem que investir dinheiro”, explica.
O linguista esclarece que as línguas Guarani Kaiowá, Terena e Kadiwéu estão em posição mais segura, por terem mais falantes. Mas nada é garantido se não há interesse e investimento.
“O risco de cada um é conforme vai se perdendo. O Kadiwéu é uma língua muito estabelecida, muito forte, inclusive eles têm dificuldade de português, muitos não falam. Guarani Kaiowá ainda tem uma força de manutenção da língua [que é] grande. Terena, 26 mil índios, talvez um 6 mil que falem a língua. Se for ver, é bastante, mas tem várias aldeias que não falam a língua. Para a Unesco, menos de 50% do grupo não falar já é perigo de extinção”, alerta.
É o caso da terena Antônia da Silva, 72 anos. Ela se lembra de quando a língua quase sumiu. “Ela misturou muito com o lado do branco. Tanto que eu mesmo não sei falar”, explica.
Apesar das ameaças, relata que há um processo de retomada da língua indígena com a formação de professores fluentes para ensinar as crianças de aldeias como a Lagoinha, localizada em Aquidauana, distante 139 quilômetros da Capital, onde a indígena vive.
São esforços diários, como o dessa aldeia, contra esforço nenhum do poder público, conforme destaca o pesquisador. “Acho que aqui tem uma negligência do Estado em se voltar pra questão indígena”, diz.
Quem sou eu, eu que já não falo como falava meu povo? É a grande questão, para o professor, em perder a língua: perde-se quem se é. “A questão da identidade fica afetada. Uma das grandes forças identitárias é a língua e dentro da língua se carrega muita coisa da cultura. Você perde a língua, você perde histórias. Não nomeia. ‘Vou contar o mito da criação terena em português’. Você pode contar. Tem a mesma força cultural e histórica do que na língua? Não tem”.
La frontera selvagem
As porteiras do Estado no sul e do lado pantaneiro, em Corumbá, que abrem a divisa do Brasil com Bolívia e Paraguai, contribuem um pouco para que o falar continue diverso. O sul-mato-grossense é um pouco, ainda que não queira, paraguaio e boliviano.
Dione Zurita Cruz, 56 é sul-mato-grossense, mas tem mãe e pai bolivianos. Nasceu aqui de pais recém-imigrados que chegaram ao que ainda se chamava de Mato Grosso em 1954. Ela é uma das criadoras da Praça Bolívia, espaço cultural da comunidade boliviana em Campo Grande que acontece um domingo a cada mês na Capital.
“Eu era filha caçula e era a mais que mais viajava com ela [mãe], eu que tive mais esse privilégio de conhecer a família e ter mais contato. Eu aprendi sem ninguém me ensinar. Eu sei ler e escrever. Eu falo quando eu acho pessoas que vem de lá, ou amigos que a gente tem que querem falar, mas falar e escrever, até no whats, a gente escreve em castelhano”, diz ela.
Dione tentou fazer os filhos se interessarem pelo castelhano - o espanhol boliviano -, sem muito sucesso. Mas a filha, que hoje estuda Medicina em Cochabamba, na Bolívia, aprendeu na marra. A cozinheira de pratos tradicionais ressalta, ainda assim, que por mais invisível que seja, falado, às vezes, apenas no seio das comunidades, o espanhol boliviano se fortalece com o intercâmbio cada vez maior entre os países.
A Praça Bolívia, diz, ajudou a valorizar esse povo que cruza a fronteira. “Fortalece a cultura. Não é tanto boliviano que vai até lá, mas vai gente que vai pra Bolívia, vê a cultura, gosta da comida e vem apreciar”, comentou.
Escritor brasiguaio, Douglas Diegues é cria da faixa que divide Brasil e Paraguai em Ponta Porã e um poeta do “Portunhol Selvagem”, essa língua rebelde da fronteira. Ele defende a liberdade com que brota, marginal, esse falar em Mato Grosso do Sul.
“El portunhol selvagem es um trem bala carregado de poesia. El portunhol selvagem es como um ovni carregado de poesia. Como explicar um ovni carregado de poesia? Tudo que sei es que el portunhol selvagem brota como flor de la buesta de las vacas. Y que es belo, feio, rupestre, selvagem, estrangeiro, mas tem uma graça, uma coisa inexplicável, que es lo que impacta”, diz ele.
A sinestesia da fronteira, comenta, faz do Estado um local rico em cultura. “As ruas da fronteira desde a minha infância sempre foram ruas multilíngües. Nos becos de lata da linha internacional fala-se espanhol, português, portunhol, árabe, chinês, japonês, inglês, koreano, paquistanês, sânscrito, Guaraní, maká, entre otros idiomas. Esse cosmopolitismo de bolso, selvagem, singular, é uma das características que faz da fronteira de Ponta Porã com Pedro Juan Caballero um lugar diferente e rico em micro-culturas”, comenta.
Assim como pesquisador Rogério Vicente, Douglas Diegues afirma que, em meio à diversidade, há a luta para que o falar sobreviva. “Essa riqueza deve ser apreciada, cuidada, cultivada. Devemos proteger as culturas indígenas. Os fazendeiros precisam aprender com Manoel de Barros a proteger os mais fracos e a apreciar a beleza das culturas ameríndias no Mato Grosso do Sul. Deve haver mais empatia e intercâmbio. Os fazendeiros devem baixar a bola e aceitar que tem muito a aprender com os indígenas que ainda sobrevivem nestas paisagens cada vez mais apocalípticas”, comentou ele.
Fwaié é gente. Fwak, diz o homem Ofaié. Ahtafwa, diz a mulher. Mas a língua está quase Fwe’é, apagada. A luta é para que não Kyît, morra. Tic-tac.