MS tem presos que "não existem” e nem falam português, mostra estudo inédito
Levantamento que impressionou foi feito em Dourados, onde há a maior população carcerária indígena
Imagine ser condenado por um crime e não entender o porquê, não poder se defender falando o próprio idioma e sequer ter documentos que comprovem que você é você. Em Mato Grosso do Sul, não é preciso ser um refugiado ou imigrante para passar por isso.
Indígenas estão vivendo a experiência no Presídio Estadual de Dourados, que é o que concentra maior fatia dessa população carcerária no país. Eles relataram isso durante entrevistas feitas pela Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul.
Os relatos produziram dados para um estudo inédito sobre o encarceramento de indígenas no local, apresentado nesta terça-feira (16), na sede do órgão em Mato Grosso do Sul. Ele aponta violações de direitos e da dignidade humana no sistema prisional que são consideradas graves.
Mais presos no País - Mato Grosso do Sul segue como o Estado que tem mais presos autodeclarados indígenas no Brasil, segundo a Defensoria apurou junto à Secretaria Nacional de Políticas Penais, órgão do Governo Federal. O equivalente a um terço do total desses presidiários no país está detido em cidades sul-mato-grossenses.
Somente em Dourados, são 206 e, em todo o Brasil, são 1.226. Os dados são referentes a junho de 2023.
Mato Grosso do Sul já havia aparecido na liderança em ranking de 2019 feito pela mesma secretaria. Eram 349 presidiários indígenas, na época. Os dados mais atuais indicam que são 401, como mostra o gráfico acima.
Língua e documentos - O defensor público Cauê Duarte Urdiales, também coordenador do Núcleo Institucional do Sistema Penitenciário da Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul, diz que o estudo revela "a marca da incompreensão" da Justiça em relação aos povos indígenas.
Eles [os indígenas] não são compreendidos. Quem são, quais são os seus valores, qual a sua cultura? Não há nenhuma compreensão [por parte] do sistema de Justiça de quem está do lado de lá [os povos indígenas]", resume o defensor.
Existem indígenas que sequer sabem o motivo de estarem presos, segundo constatou o levantamento. Isso poderia ser sanado com a presença de intérpretes do português para as línguas maternas ou o contrário, o que está previsto em normativas que o Judiciário brasileiro deve seguir.
Cauê fala de um caso que é exemplo. "Houve no meio do atendimento um indígena que tinha sido condenado a 131 anos de pena [...]. A assessora olha a sentença para ver a quantidade e fala, o que eu faço?", começa.
Ela informa ao indígena a pena recebida e ele não faz nenhuma expressão, nem de desconforto nem de revolta, de nada. Ele fica em passivo. Por qual razão? Porque ele não compreendeu o que são 131 anos. Foi julgado com os números apresentados sem a garantia de intérprete, sem a garantia de um laudo antropológico, então isso materializou esta incompreensão do sistema de Justiça para com a questão indígena", conclui o defensor.
O condenado ainda é paraplégico e, durante o cumprimento da pena, foi encarcerado em condições precárias. Contou com a assistência da Defensoria Pública para a transferência ao regime domiciliar.
A falta de qualquer tipo de documentação foi outra coisa que chamou a atenção. Alguns indígenas não têm nem certidão de nascimento como prova de que "existem".
"Isso surpreendeu, porque, como uma pessoa passou desde a delegacia, depois no processo judicial e não teve o direito à documentação básica?", pergunta o coordenador do Núcleo de Direitos dos Povos Originários da Defensoria, Lucas Pimentel.
Dos 206 indígenas do presídio, 22,3% não possuíam qualquer documento da vida civil, como certidão de nascimento, RG, CPF e/ou título de eleitor. Assim, estão totalmente desassistidos de qualquer assistência pública.
O estudo também mostra que 177 indígenas (85,9%) afirmaram que não tiveram acesso a um intérprete de sua língua materna durante o processo criminal e 14 indígenas (6,8%) disseram que tiveram acesso. Em 15 entrevistas, não foi possível coletar dados.
Quanto à incompreensão do português, os defensores relataram que os indígenas ouvem frases no idioma de cabeça baixa, mãos para trás e braços cruzados, mas mudam de postura quando elas são ditas na língua de sua etnia. "Quando uma intérprete falou em guarani, todo eles levantaram a cabeça e olharam. Isso é porque era língua deles", disseram.
Os dados apontam que 188 indígenas (91,2%) declararam que não foram entrevistados por antropólogo durante o processo penal ou execução da pena, e cinco indígenas (2,4%) declararam que foram entrevistados.
O direito à intérprete está previsto em normas da Justiça Criminal, porém, não é assegurado em todos os casos, como demonstra o levantamento.
"Minimizar ou tentar resolver" - Os defensores admitiram que a instituição não tinha conhecimento "do tamanho do problema" antes de fazer o trabalho, embora soubesse que havia falhas no sistema judiciário em relação a tudo isso.
Com a divulgação do resultado, a expectativa é dar visibilidade aos casos e reunir forças de diversas instituições para "minimizar ou tentar resolver", segundo Cauê.
"A gente acredita que os esforços devem ser mútuos, mas podemos começar a amenizar e tentar fazer que as coisas comecem a acontecer conforme a legislação determina. Dentro da Justiça, a lei tem que imperar. É isso que nós exigimos, que seja reconhecida e garantida aos indígenas a especialidade que o direito lhes assegura", finaliza o defensor.
Receba as principais notícias do Estado pelo Whats. Clique aqui para acessar o canal do Campo Grande News e siga nossas redes sociais.