"Não julgar" ajudou menina que nasceu sob vício de crack e álcool dos pais
Aos 12 anos, adolescente relata como família achou caminho para viver enfrentando a dependência química
“Não julgar o pai e a mãe”. É o que diz a consciência de quem está preparado para fazer as pazes com os erros dos pais e seguir, entendendo que eles deram o melhor que podiam com as condições que tinham naquele momento.
Parece simples, mas, para muitos, a aceitação só vem depois de muitas sessões de psicoterapia. A frase é o ponto alto da entrevista com uma menina de apenas 12 anos, que traz esse conselho depois de muito sofrer com a dependência química dos pais. A mãe usava crack na gravidez e o pai, hoje sóbrio, luta contra a dependência do álcool.
Essa garota, que tremia quando era bebê por causa da abstinência dos entorpecentes consumidos pelos pais, vamos chamar de Ana, pois ela não precisa e nem deve expor o nome verdadeiro, como aprendeu no grupo de ajuda que frequenta desde os 5 anos, mas seu relato é muito rico para quem enfrenta a mesma situação ou mesmo a qualquer um que deseje lançar um olhar mais sensível a quem faz parte da família de um dependente químico.
O caminho - Foi no Alateen, um grupo para familiares de alcoólicos, que Ana aprendeu que o vício dos pais é uma doença e que mudanças de atitudes, tanto deles, quanto de toda família poderiam contribuir para a recuperação.
Ela diz que o grupo foi “o melhor caminho” que a família encontrou. A mãe adotiva é a ex-mulher do pai de Ana. A empregada doméstica de 53 anos tentou retomar o casamento quando Ana nasceu do relacionamento dele com uma mulher, que, à época, usava crack. Não deu para sustentar a união, mas a mulher se encantou pela neném, que adotou quando tinha pouco mais de um ano.
Ao lançar apenas um olhar ao bebê que tremia e chorava sem parar, a pediatra perguntou, sem saber que a mãe era adotiva: “você usou crack durante toda a gravidez?”.
De lá para cá, foi muito chá de camomila e carinho que ajudaram a criança a crescer, cada vez mais, saudável, segundo a mãe. Ela passou pelo grupo AA (Alcoólicos Anônimos) e hoje frequenta o Al-Anon, enquanto a filha vai ao Alateen.
O Al-Anon me ajudou a saber como conversar com ele, entender ele e ter paciência, porque é uma pessoa doente. Eu pensava: 'o que to fazendo aqui, não sou alcoólatra'. Aí eu entendi que estava mais doente do que ele. Eu achava que ele bebia porque queria, mas aprendi que era doença. A partir daí comecei a mudar”, conta a mãe de Ana.
“Eu achava entediante, ficava quieta, mas aí fui decorando até a oração do grupo, que me ajudou a entender mais o meu pai, o porquê ele fez as coisas que fez. Ele era estressado, ficava gritando. Tinha vezes que vinha bêbado e brigava com a mãe [adotiva] e me levava para ver a outra mãe [biológica], mas como eu tinha medo dele, deixava me levar. Mesmo sendo criança, eu via o que estava acontecendo. Ele saía e voltava depois de vários dias. Eu ficava preocupada com minha mãe chorando e tentava consolá-la”, relata Ana.
Aos novatos - Quem chegou recentemente fala primeiro nas reuniões dos grupos. Aos novatos, diz Ana, “eu falo que se eles não conseguirem entender na primeira vez, continuem indo ao grupo porque vão achar o caminho, eles vão achar resposta”.
O principal é "não julgar os pais” e “entender o que os levou a isso”, na visão dela.
Eu julgava meu pai, ficava com raiva, pensava que as pessoas não faziam o que ele queria e então ele descontava na gente. Ele sempre pedia desculpas e eu cansava de ver ele pedir desculpa. Depois que parei de julgar, entendi que ele não conseguia controlar, ele não escolhia ficar nervoso. Comecei a perdoá-lo. Ele sentiu essa diferença, mudou um pouco”, conta a filha.
Ela não romantiza, diz a verdade. As coisas ainda são difíceis para ela. A menina espera que a convivência ainda se torne mais fácil com o passar do tempo e o apoio que recebem no grupo Al-Anon. Ela vive com a mãe adotiva em uma casa no mesmo terreno da casa do pai. “É difícil, às vezes, tenho que adivinhar o que ele quer”, desabafa.
Conselho - “Quem tem os pais assim vai encontrar caminho. Até hoje, meu pai não bebe mais, mas sempre vem alguns problemas junto, nunca fica livre. Você tem que continuar no grupo. Depois da recaída, o familiar tem que continuar. E sempre, digo, evite o primeiro gole [de álcool]. A chance é maior de um filho de alcoólatra se tornar também”, diz.
Ela conta que o “jovem de hoje em dia” fuma e bebe na escola e acha bonito.
Não acho bonito e não é porque sou diferente. É porque eu vi o lado ruim, o que acontece depois. Eles veem um lado bom de sempre ter prazer, mas tudo que vicia é droga!”, alerta Ana.
E a mãe biológica? Ana diz o mesmo: aprendeu a entender e não julgar. “Ela fez tratamento, ficou em uma chácara. Acho que teve recaída. Não entendia antes, mas hoje entendo. Ela não pode ficar comigo porque era usuária”, conta.