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Capital

"Botei remédio no suco pra ele dormir”: o drama familiar da internação à força

Mulher que dopou o irmão usuário de droga para internação viu os laços fraternais serem esgarçados

Aline dos Santos | 07/06/2019 10:16
Irmãos juntos em passeio na infância. Na vida adulta, internação involuntária é relatada por ele como inferno, enquanto irmã diz que  tentou salvá-lo. (Foto: Arquivo Pessoal)
Irmãos juntos em passeio na infância. Na vida adulta, internação involuntária é relatada por ele como inferno, enquanto irmã diz que tentou salvá-lo. (Foto: Arquivo Pessoal)

Lei federal publicada ontem trouxe regras para a internação involuntária (contra a vontade) de usuários de drogas. Mas também há quem trilhe caminhos menos ortodoxos e, num misto de desespero e tentativa de salvação, leva o familiar para a clínica que cabe no bolso, apesar da má reputação.

Esse roteiro foi percorrido por uma funcionária pública, moradora de Campo Grande, que dopou o irmão usuário de droga para ser internado no interior de São Paulo, e viu os laços fraternais serem esgarçados: “Falou que eu acabei com a vida dele”, conta.

Ela relata que a droga chegou à vida do irmão na adolescência. “Conheceu a droga muito menino com 13, 14 anos”. Em 2016, já adulto, com mais de 30 anos, a situação dele preocupava toda a família. “Meu irmão já não ia bem no trabalho, nossa mãe estava passando por um tratamento sério de saúde e ele ficou muito sozinho”.

A casa ficou praticamente destruída por conta da falta de limpeza, do abandono. Mas, ele achava que estava tudo certo. Andava maltrapilho, agressivo, vizinhos reclamando porque a casa tinha, de certa forma, ganhado fama de ‘boca de fumo’”.

Nesta situação, ele chegou à casa da irmã, que propôs uma internação voluntária para tratamento. A intenção era que ele também pedisse licença no trabalho. A dependência química o levava a faltas frequentes no serviço. De comum acordo, os irmãos foram ao psiquiatra. “Eu chorei na frente do médico, me lembrei dele criança, no berço”, conta.

A consulta resultou em atestados para abonar as faltas no serviço e numa guia de internação. Mas, logo após deixar o consultório, o paciente mudou de ideia e disse que queria ficar na casa da irmã.

“Fiquei sem chão. Busquei ajuda sobre internação compulsória, consultei a companheira dele, que também queria muito que aceitasse a internação, consultei meu outro irmão e, por fim, os filhos dele. Todos me apoiaram e aí reuni forças para tomar a decisão mais difícil da minha vida. Eu sabia que ele não me perdoaria, mas preferia vê-lo com vida, de pé novamente e com raiva de mim, do que perdê-lo para as drogas”, diz a funcionária pública.

Ela se lançou às pesquisas e descobriu um grupo que poderia levar o irmão até uma clínica no interior paulista. Eles são ex-dependentes químicos, trabalham em uma clínica de Campo Grande e, com autorização da família, buscam o paciente.

“Meu irmão foi sedado. Coloquei remédio no suco pra ele dormir. A cena foi horrível. Parecia um trapinho humano, cercado por três outros rapazes. Tirei dinheiro de onde não tinha. O psiquiatra do meu irmão me disse que era contra o tratamento involuntário porque não surte efeito”, relata.

A internação involuntária foi concretizada na clínica do interior paulista, num tratamento de seis meses. A família se uniu para custear a mensalidade de R$ 1 mil. Nas cartas e visita, o paciente reclamava da qualidade da comida – salsicha e ovo-, que batiam nas pessoas e que não havia atendimento psicológico.

“Eu tive o ímpeto de tirá-lo de lá, mas a companheira dele me deu forças. Disse que era importante terminar o tratamento e que as reclamações eram esperadas. Lembro quando fomos embora e ele conseguiu uma fresta de uma janela de banheiro. Eu só via os olhinhos dele, pedia para ir embora comigo. Imaginava pelas grades e segurança reforçada que lá realmente era tenso por ser internação compulsória”.

Ela conta que passou a receber ligações de pacientes que conheceram seu irmão na clínica. Eles sugeriam internações em Minas Gerais, com acomodações decentes e atendimento psiquiátrico. Passados seis meses, ele saiu da clínica, voltou de ônibus para Campo Grande e decretou o fim das relações com a irmã. A família conta que ele está bem, trabalhando e que não quer saber de drogas para não voltar para o inferno.

“Pessoas carentes tentam de tudo e acabam por acorrentar filho em casa, fazer loucura. A família também adoece e a minha já tinha feito de tudo. Mesmo assim, erramos com a clínica. A raiz do negocio é o tráfico e com esse tema ninguém mexe”.

Na internet, a clínica do interior paulista informa tratamento de seis meses por R$ 6.900 (R$ 1.150 em seis parcelas) ou R$ 9.100 (sete parcelas de R$ 1.300). 

O que diz a lei - Publicada na quinta-feira (dia 6), a Lei 13.840 libera a internação involuntária de usuários de drogas e determina que o pedido pode partir de familiar, responsável legal e, na absoluta falta deste, de servidor público da área de saúde, da assistência social ou dos órgãos públicos integrantes do Sisnad (Nacional de Políticas Públicas sobre Droga), com exceção de servidores da área de segurança pública. Antes, com base em lei de 2001, familiares já poderiam fazer a solicitação.

Mas, tanto para internação voluntária ou à força, a decisão é do médico. “A internação de dependentes de drogas somente será realizada em unidades de saúde ou hospitais gerais, dotados de equipes multidisciplinares e deverá ser obrigatoriamente autorizada por médico devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina”, diz a lei federal.

As regras para internação involuntária incluem o seguinte passo a passo: deve ser realizada após a formalização da decisão por médico responsável; será indicada depois da avaliação sobre o tipo de droga utilizada, o padrão de uso e na hipótese comprovada da impossibilidade de utilização de outras alternativas terapêuticas previstas na rede de atenção à saúde; perdurará apenas pelo tempo necessário à desintoxicação, no prazo máximo de 90 dias, tendo seu término determinado pelo médico responsável.

Ainda conforme a legislação, família ou o representante legal poderá, a qualquer tempo, requerer ao médico a interrupção do tratamento. As internações deverão ser encaminhadas em 72 horas ao Ministério Público e à Defensoria Pública, numa medida contra cárcere privado. A lei proíbe qualquer modalidade de internação em comunidade terapêutica.

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