Com juros que vão a 150%, agiotagem é um risco a finanças, patrimônio e vida
Na ponta do lápis, taxa do sistema formal também pressiona, mas banco não manda matar
No epicentro de um submundo de assassinatos e desaparecimentos, a palavra agiota tem ganhado projeção nos noticiários de Campo Grande e conduz a um enredo com juros estratosféricos e riscos à integridade física. O termo é forte e sempre refutado por quem exerce a atividade ou pela clientela. Todos preferem a expressão pessoa que empresta dinheiro a juros.
Com a população endividada, a atividade paralela ao sistema bancário segue em alta. O Campo Grande News já noticiou casos em que a vítima foi exposta a juros de 150%. Uma mulher de 78 anos foi baleada por engano no Bairro Coophatrabalho, no mês passado. A investigação descobriu que o alvo era o filho, que fez empréstimo de R$ 2 mil, mas teria que pagar mais do que o dobro para o agiota: R$ 5 mil.
Noutro episódio, a taxa era de 65%. Preso no Bairro Nova Lima, o autor de 45 anos emprestava de R$ 1 mil a R$ 5 mil. Quem pegasse R$ 5 mil, por exemplo, deveria pagar R$ 8.250. A cobrança era feita sob a mira de arma de fogo. Ao fazer a prisão, a equipe da Derf (Delegacia Especializada de Repressão aos Crimes de Fruto e Roubo) apreendeu 11 notas promissórias e R$ 2.500. A delegacia apurou o crime de extorsão, que costuma ser um desdobramento da agiotagem.
Nos casos comunicados à Derf, não houve relatos sobre perda patrimonial das vítimas, como carros ou imóveis. Contudo, um expediente comum é o agiota exigir que veículo do credor seja colocado em nome de laranja.
Noutro episódio, agiota preso em outubro do ano passado comprovou não ter envolvimento em assassinato, mas acabou réu pela posse irregular de arma de fogo. Ao ser preso, o homem de 29 anos disse que tinha o revólver calibre 38, pelo qual pagou R$ 2.800, porque “trabalha emprestando dinheiro”.
O agiota bonzinho – A atividade, tanto para os vistos como bonzinhos pela clientela ou aqueles que usam arma de fogo para achacar as vítimas, tem uma regra clara: não se empresta dinheiro para amigo ou parente.
“Empresto só para estranhos. Amigo e parente não pagam”, diz entrevistado de 47 anos, que impôs condição de anonimato. Ele conta que emprestava valores de R$ 500 a mil reais, cobrando taxa de juros de 20%. A clientela era basicamente motoristas de aplicativos, que pagavam a dívida por meio de parcelas semanais.
“Tem aqueles que é tão certinho que a gente até se surpreende com as pessoas. Tem os que somem e ficam dando desculpas”, afirma. Por enquanto, ele suspendeu os empréstimos com juros por conta de calote e da pandemia. “Não sou de matar ninguém para pagar”.
Para quem recorre aos empréstimos paralelos, o sonho é o agiota que não mata e cobra juros de 10% sobre o valor. Professora aposentada de 70 anos, que pediu para não ter o nome divulgado, diz que teve essa “sorte”, porque usou uma amiga como intermediadora.
“Ela pegou R$ 3 mil emprestado com o agiota como se fosse para ela. Os dois são muito amigos. Acabei de pagar agora”, diz. A professora conta que chegou a passar um tempo despreocupada em relação à dívida, pois o homem tem idade avançada e teve quadro grave de covid. “Achamos até que ia morrer, mas não morreu”.
Usura, ameaça e extorsão – Na letra da lei, agiotagem se chama crime de usura, juros excessivos cobrado por empréstimo. Mas, na vida real, raramente alguém procura a polícia para entregar quem lhe empresta dinheiro a juros. Essa denúncia só acontece quando a situação envolve ameaça e extorsão, portanto, práticas violentas.
De acordo com o advogado José Belga Assis Trad, o instrumento que regula a cobrança de juros entre particulares é de 1933 e prevê que não pode ser cobrado juro acima do dobro da taxa legal.
“E o que é a taxa legal? Tem duas interpretações possíveis. Uma é a taxa Selic, divulgada mês a mês pelo Banco Central. Outra interpretação possível é que a taxa legal é de 1% ao mês, como é o dobro, o limite seria juros de 2%”, afirma
Conforme divulgado em 9 de janeiro, a Selic (Sistema Especial de Liquidação e de Custódia) é de 9,25% ao ano. Ao mês, seria 0,7% de juros, que, aplicando-se o dobro, chega a 1,5% ao mês. Portanto, bem inferior a melhor condição encontrada no mercado paralelo: juros de 10%.
A pena para crime de usura (agiotagem) é de seis meses a 2 anos. “Recrimino o agiota que cobra juros excessivos, se aproveitando da situação de vulnerabilidade da pessoa. O agiota empresta com juros estratosféricos. Depois, simula contrato de compra e venda para ficar com a casa do sujeito. A casa é bem de família e em hipótese alguma ele perderia a casa no empréstimo formal”, diz o advogado.
Agiota, cheque especial e cartão – O economista Eugênio Pavão elenca três fontes de dinheiro fácil, mas perigoso: agiota, cheque especial e cartão de crédito. Contudo, o especialista reconhece que a vida de quem precisa de financiamento não está fácil.
“Os bancos têm o score, aquela avaliação de risco, se vale a pena ou não emprestar. As instituições bancárias ganham mais comprando título do governo do que emprestando dinheiro. Eles colocam uma série de obstáculos e vão negar o empréstimo, porque grande parte da população está endividada, com score baixo ou negativo. Então, sobra esse tipo de financiamento”, afirma o economista.
Os juros do cartão do crédito rotativo se aproxima de 350% ao ano. “À primeira vista, os juros por mês não parecem tão alto. Mas se não paga, sobe de forma exponencial”, diz.
Saúde financeira – Com atuação na área de finanças pessoais, a economista Andreia Saragoça afirma que há saída até para os superendividados. Mas a recuperação financeira exige paciência, perseverança e, principalmente, não entrar em desespero.
“Pare e olhe para as suas despesas. O que realmente preciso agora, de maneira objetiva? Os clientes chegam desesperados. Mas você não vai dormir endividado e acordar sem dívidas. Vamos conhecendo os seus hábitos de consumo para você mudar de forma gradativa, saindo do endividamento e galgar uma nova realidade”.
A orientação é colocar as contas no papel, revisar o orçamento e buscar colaboração da família.
Em todo caso, se um empréstimo for realmente necessário, é preciso pesquisar as melhores taxas e modalidades (pessoal, com desconto em folha). Para consultar as taxas de juros, clique aqui
Desespero e sumiço – Ameaçado de morte por agiota, o comerciante Adriano Villarino da Costa, 34 anos, passou dois dias desaparecido em Campo Grande. Ele sumiu por medo de morrer, mas acabou localizado pela DEH (Delegacia Especializada de Repressão aos Crimes de Homicídios). Ele entregou uma lista de credores e o caso será investigado pela Polícia Civil.
Num vídeo, o comerciante pede para que os agiotas não procurem amigos ou familiares.
Noutro caso, o desaparecimento de Carlos Reis Medeiros de Jesus, 52 anos, conhecido como Alma, pode ter relação com suposta atividade de agiotagem. A possibilidade foi levantada pela sua esposa, durante depoimento à polícia. Ele foi visto pela última vez em 30 de novembro do ano passado.