Moradores comemoram regularização, mas luta por direitos deve continuar
Projeto aprovado garante regularização de terrenos na ocupação no Jardim Centro Oeste, em Campo Grande
A dor em dias frios, a dificuldade em dias chuvosos, a solidão em viver à luz de vela durante as noites e até o medo em estar abrigado apenas por lona e madeira. Essas são algumas das sensações presentes na memória de milhares de moradores da ocupação da Homex, em Campo Grande.
O direito à moradia adequada, que inclui infraestrutura, saneamento básico, energia elétrica, segurança, salubridade e outras condições mínimas à sobrevivência, deve ser garantido pelo Estado brasileiro. Seja por acordos com a ONU (Organização das Nações Unidas), como também pela Constituição Federal, o direito está nos princípios da organização social e está diretamente ligado à dignidade da pessoa humana.
Há mais de sete anos, em torno de 1,5 mil famílias que vivem na região esperavam pela regularização das moradias. Na última terça-feira, 7 de março, veio a resposta, ainda que haja muitos problemas a serem enfrentados e muito trabalho a ser feito pelo poder público.
Entre quem mora na Homex, a aprovação do projeto de regularização fundiária pela Câmara Municipal é sinônimo de alívio. A proposta visa beneficiar 7 mil pessoas que vivem na área remanescente de obra de R$ 200 milhões, que previa construir 3 mil casas na Capital, em 2010.
As próximas etapas serão georreferenciamento, levantamento topográfico, cartório e emissão de escritura. A expectativa é de que todo o trâmite seja concluído na metade de 2024.
A dona de casa Juraci Ferreira, de 65 anos, não é do tempo do início da ocupação, mas se mudou no começo de 2020, quando a pandemia da covid-19 surgiu. Ela se mudou por conta da filha, que teve a primeira iniciativa de ir para lá, já que estava sem renda para custear o aluguel de R$ 550, no Jardim das Macaúbas. Ela ficou desabrigada e até morou alguns dias de favor em Corumbá, antes disso.
Juraci viveu em um barraco durante cerca de dois anos. Somente em dezembro de 2022, o genro conseguiu construir uma casa de alvenaria para a sogra, a partir da doação de materiais. “Eu sempre pensei, se for para este lugar ser nosso, vai ser. Pedi a Deus para nos dar condições e todo tempo acreditei que pudesse, um dia, ser meu”.
Passamos coisas muito difíceis aqui. Quando chovia, pensava até quando ia ficar nesta situação. Não tínhamos água e luz, direito, e quando vinha a chuva, meu Deus, vinha todo mundo para baixo do meu barraco, até as vizinhas. Ficava todo mundo apreensivo, acho que essa foi a pior fase, mas nós passamos. Agora, acredito que só vai melhorar", diz a moradora Juraci Ferreira.
A dona de casa explica que quando chegou no local, havia muitos barracos de lona e madeira, mas que com o passar do tempo, os moradores foram construindo suas casas. Com alegria no olhar, ela afirma que conseguiu acompanhar o desenvolvimento do que ela e a vizinhança já entendem como um bairro, apesar de o local ainda pertencer ao Jardim Centro Oeste. “E esse é só o início. Acredito que vai virar algo maior, aumentar o movimento”.
Uma das lideranças entre os moradores, Jairton Saraiva, de 46 anos, mora há seis anos na área e, antes de se mudar para lá, morava no Aero Rancho, com a mãe. Natural do Pernambuco, seu pai foi um dos primeiros a entrar na ocupação, um ano antes do filho, que seguiu seus passos e foi em busca de um pedaço de terra para chamar de seu.
Ele relata que quando pisou no lugar pela primeira vez, chegou a dizer: “Deus me livre de morar aqui”. Entretanto, hoje, não há lugar melhor para Jairton, que chegou a conhecer sua esposa, Darline Lima, 36, justamente na Homex. “Hoje em dia, não consigo me imaginar em outro lugar. Quando estou em qualquer outro bairro, fico doido para voltar para casa”.
“Mas foi muita luta. A visão que se tinha, quando eu cheguei aqui, era de alguns poucos barracos de lona e madeira. Ainda tinha as reintegrações de posse e era desanimador. Mas mesmo assim, eu vim para cá, comecei a ter apego”.
Ele relata que após ver uma família ter a casa derrubada pela prefeitura, foi preciso que uma liderança fosse nomeada. Entre os candidatos, surgiu o nome de Jairton. “Era aquela luta para ter direito à água e à luz. A concessionária sempre negou os nossos pedidos, mas agora, a prefeitura bateu o martelo e acredito que vamos ter mais dignidade".
“Hoje em dia, é raro você encontrar um barraco de madeira na Homex, talvez só na área mais próxima da mata, mas lá também será beneficiado. São mais de 7 mil pessoas residindo aqui e 1,5 mil famílias foram regularizadas. Ainda está havendo repescagem para moradores ainda não cadastrados”.
Na casa do morador, são feitas ações para regularização, bem como doações, e sua esposa coordena cursos de panificação e confeitaria. O casal ainda foi responsável por liderar a realização do Arraiá da Homex, uma festa junina que deve se tornar tradição aos moradores.
Darline lidera projeto intitulado Grão de Mostarda, em alusão à passagem bíblica que trata sobre a fé de quem acredita em Deus, que reúne cerca de 50 mulheres voluntárias, que atuam na distribuição de alimentos e nos cursos.
Ela morava na casa da mãe no Jardim Paulo Coelho Machado e se mudou há cerca de seis anos. Ela era mãe solo de quatro filhos - que hoje têm 20, 17, 15 e 13 anos -, e queria um lugar para criar sua família. O pai foi quem comentou sobre a ocupação, e ela se mudou, após pagar R$ 1 mil em um terreno.
“Os primeiros dias foram de muito medo, eu ficava o dia todo dentro do barraco. Saía apenas para trabalhar num espetinho no Aero Rancho, das 17h às 23h. Eu madrugava no transporte público, era muito difícil. Muitas mulheres desistiram daqui, mas eu nunca tive medo, só não tinha dinheiro”.
Ela detalha que teve de aprender a fazer de tudo, para conseguir alguma estrutura para sobreviver. “Eu mesmo coloquei o barraco de madeira, coloquei lona e fiz o contrapiso do meu jeito. Fiquei três meses à luz de vela e cozinhando num fogão a lenha improvisado. Eu descia a pé para perto dos predinhos, para conseguir água. Mas nunca perdi a fé e sempre fiquei animada”.
Quem vinha de vez em quando só para manter o lote foi embora. Quem ficou na ocupação é quem realmente precisava de uma casa. Com a regulamentação, agora, acaba o medo, podemos respirar aliviados e colocar a cabeça no travesseiro, em paz, sabendo que ninguém vai vir aqui tirar a gente. Foi uma conquista muito grande e valeu a pena ter lutado desde o comecinho”, relatou Darline.
A dona de casa Graciete Soares, de 53 anos, vive há mais de dois anos na Homex, após parar de morar de aluguel no Parque Novo Século. Ela conta que após o divórcio, ficou sem ter como arcar com o valor do aluguel e que, após saber da ocupação, comprou uma casa já levantada e fez a mudança.
Para ela, que vive com o dinheiro do Bolsa Família e de algumas diárias que ainda consegue fazer, a regularização vai ser a oportunidade para conseguir ampliar a sua casa, que possui banheiro, sala e apenas um quarto para ela e dois netos. “Estou esperando dar uma normalizada nas papeladas para começar a comprar material de construção”.
“Estou há cinco anos sem receber minha aposentadoria. Minha renda é só do Bolsa Família, de algumas diárias que consigo fazer, mas é muito difícil. Depois que a gente passa dos 50 anos, fica muito escasso o mercado de trabalho”, diz Graciete, que costuma ficar com os netos enquanto o filho e a esposa trabalham fora. “Os pais precisam trabalhar e não conseguem colocar eles numa creche”.
“A regularização vai ajudar a gente legalizar a água e luz. Eu sempre pagava certinho e quero continuar pagando, até por conta da irregularidade. Só na minha casa, três ventiladores já queimaram. Acordei com aquela fumaceira no quarto e era o ventilador pegando fogo. Vai dar mais segurança para a gente e vou até pegar um empréstimo, sabendo que não terei dor de cabeça depois”.
Homex – Em 2013, o projeto de construção de casas foi abandonado e os terrenos da empresa, que não tinham função social, foram ocupados por moradores. Os procedimentos para regularizar a área da Homex são realizados desde 2018. No ano passado foi recolhida toda a documentação.
O custo total do projeto de regulamentação, incluindo a permuta de terrenos, é de R$ 10 milhões. O loteamento terá o fornecimento de energia elétrica e água regularizado pelas concessionárias. Cada lote terá custo de R$ 20 mil, pago de forma parcelada. A cada mês, o proprietário vai desembolsar 10% do salário mínimo. Com o valor vigente hoje, a parcela seria de R$ 130. Após receber a escritura, o proprietário só pode alugar ou vender o imóvel após cinco anos.
Na sexta-feira (3), a prefeita Adriane Lopes (Patriota) anunciou a conclusão do processo para que o poder público possa assumir a área e a empresa receba terreno no Portal Caiobá. Além disso, também foi feito pente-fino para identificar quem, de fato, mora no local.