Nas ruas, agente de trânsito é psicólogo e educador que não esquece as tragédias
No dia a dia, é comum o desacato e lidar com motorista bêbado, mas é a tristeza da perda que fica na memória
O agente de trânsito é, antes de tudo, um educador, segundo palavras do comando do setor. Para o condutor infrator, é o algoz, temido pelo poder de interromper a trajetória irregular. Quem veste a farda, também se vê como psicólogo: três facetas que se juntam e precisam lidar com situações que vão do bêbado afrontoso até a tragédia familiar.
O que não falta no trânsito de Campo Grande são elementos para que esta rotina seja feita de altos e baixos. Somente este ano, até o dia 15 maio, foram 3.753 acidentes registrados, sendo 2.397 com vítimas e 20 mortes no local. E subindo.
“O trânsito vai muito além de só notificar e fiscalizar”, define o comandante do BPMTran, tenente-coronel Élcio Almeida. “É desafio muito grande no dia a dia você tratar com todo tipo de gente que vem desembocar no trânsito: é o cara que tá nervoso, estressado, o que não quer obedecer regras, quer sair correndo”, define.
Segundo o comandante o policial, precisa ter sangue-frio e tato para lidar com o fator surpresa, seja em fiscalização de rotina ou acidente.
“O agente tem que acalmar a situação até o condutor entender. Por que, se ele está bravo, você quer que ele sopre o bafômetro nervoso? Ele pode pegar o bafômetro, jogar no chão, quebrar, aí você já passou para o drama, tem que ir para delegacia; sai de situação tranquila para ter ocorrência policial.”
Antes de atuar como agente de trânsito, o policial, invariavelmente, passa pelas unidades que atendem todos os tipos de ocorrência.
“Ele vai pegar experiência e só vem para cá [BPMTran] quando está um pouquinho mais tarimbado”. Antes de ir às ruas como agente, ainda precisa passar por treinamento sobre legislação, atualizado regularmente, até por conta da dinâmica: desde 1997, já foram cerca de 900 resoluções alterado as regras.
E quem é o condutor infrator, o principal alvo do agente de trânsito? “É uma mistura de emoções, nem sempre é o infrator inveterado, contumaz”, descreve Almeida. Cita os que estão com documentação irregular e temem cair em blitze, os apressadinhos que furam sinal, desrespeitam o Pare ou excedem a velocidade, sempre justificado por algum problema urgente.
O comandante lembra caso de motocicleta apreendida durante bloqueio policial, no início do mês. No registro, cerca de R$ 100 mil em multas. “O cara não está nem aí para regra de trânsito”. O veículo, avaliado em pouco menos de R$ 10 mil, foi apreendido. “Para essa pessoa não importa, porque não vai pagar”.
Memória – O cabo Jair Souza está há 8 anos no batalhão de trânsito e já encontrou de tudo no trânsito da cidade.
“Geralmente, é tranquilo, às vezes, tem uns ânimos exaltados”. Antes de ser agente, trabalhou no 4° BPM de Ponta Porã, na região de fronteira.
Embora a embriaguez acompanhada de desacato seja a parceria recorrente nos flagrantes, são outras histórias que ficam na memória do policial. Souza atendeu a ocorrência que terminou na morte de Mariana Vitória Lima, no dia 15 de maio de 2021.
A jovem e namorado, Rafael de Souza Carrelo, ambos com 19 anos, estavam embriagados e brincavam, se revezando no capô do carro, na Avenida Arquiteto Rubens Gil de Camilo, até que, na vez dela, caiu e foi atropelada. “Foi um caso de embriaguez, mas foi situação inusitada, triste.”
A reportagem acompanhou o cabo no atendimento a acidente de trânsito no Jardim Canguru. Era colisão envolvendo carro e moto no cruzamento das ruas Catiguá e Javali.
A condutora do Honda Civic, que estava na Rua Javali, justificou ter avançado na preferencial por falta de visão, obstruída por dois veículos estacionados na Rua Catiguá. “Tentei ir para trás, mas tinha dois carros, não deu”. A motocicleta foi atingida e o condutor foi levado com ferimentos leves até unidade de saúde.
O registro da ocorrência foi prejudicado, porque a motocicleta foi levada do local, mas a dinâmica dos fatos é recuperada com base na posição do carro no local e testemunhos.
Quando a equipe chegou, viatura da PM da região estava no local e a marcação com giz no asfalto já havia sido feito por um mototaxista. Chamou atenção que militares bateram continência para ele. Era o subtenente Antônio Conceição da Silva, 54 anos, 32 deles como agente de trânsito e, atualmente, na reserva remunerada.
Na função, já viu de tudo e o mais difícil é lidar com a dor do outro. “Quando chega a mãe é um desespero, tem que estar preparado, acolher a família; tem emoção, mas a gente precisa agir com a razão, tem que ser meio psicólogo.”
Não à toa, uma das memórias mais fortes dos anos de trânsito foi uma tragédia familiar. Há 25 anos, o atropelamento e morte de menino de 10 anos na Rua José Nogueira Vieira, no Bairro Tiradentes. “A mãe chegou, abraçou o corpo e falava: ‘Levanta, o almoço está pronto, levanta, vai almoçar”, contou. “Minhas filhas tinham 6 e 3 anos, foi difícil, eu pensava que ele nunca mais chegou em casa.”
Com os pés fora do batalhão, mas ainda dentro do trânsito de Campo Grande, reclama da falta de blitze na periferia da cidade. “Condutor de bairro não vai para o Centro, é desrespeito a todo o momento; quando tem blitz não tem assalto, não tem desrespeito, sem fiscalização, dá brecha para a criminalidade.”
Sobre as blitze, o tenente-coronel Élcio Almeida admite que não estão sendo realizadas na Capital. Sem detalhar número, segundo ele, com o efetivo abaixo do ideal – deveria ser, pelo menos, 30% acima do quadro atual –, a ideia é centrar força no policiamento nas avenidas com maior índice de acidentes e que tem acesso aos bairros.
Almeida explica que policiamento envolve fiscalização, dentro da área de trânsito, e o serviço de polícia. “O foco é segurança pública”. Neste caso, o trabalho vai além dos bloqueios policiais de trânsito, as populares blitze.
“O bloqueio é importante, mas até um momento”, justifica. “Trabalhamos isso, deu uma acalmada, suspendemos trabalho repressivo e passamos para educação e prevenção”. Diz que nos bairros, há maior problema de infração de trânsito, mas não em acidente, mas que, futuramente, a tendência é sair da área central e voltar para os bairros. “Só blitz não resolve, tem que ser somatório.”