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Capital

No guidão da bike, jovens de 18 são “reféns de aplicativo” por R$ 800

Desemprego e domínio de empresas como Uber e Ifood, sem regulamentação precisa, fazem rotina exaustiva por menos de 1 salário

Izabela Sanchez | 29/01/2020 06:30
Mateus Batista, 18, sai com a missão da primeira entrega no início da noite em Campo Grande, na Avenida Afonso Pena (Foto: Paulo Francis)
Mateus Batista, 18, sai com a missão da primeira entrega no início da noite em Campo Grande, na Avenida Afonso Pena (Foto: Paulo Francis)

São mais de 19h de quinta-feira (16) neste janeiro que inicia 2020 e as luzes do centro de Campo Grande brilham noite adentro na confusão moderna dos novos postes e dos faróis de carros que compõe a pintura do cruzamento entre a Avenida Afonso Pena e a 14 de Julho. Mateus Batista, 18, vem rasgando a 14 de Julho de bike, em meio ao trânsito e às famílias que passeiam no novo calçadão, revitalizado, na noite quente de verão.

Esguio e acostumado ao reflexo rápido que separa um caminho seguro de um acidente, ele chega sem dificuldade a um dos pontos de moto táxi localizados na Afonso Pena. Bicicleta vermelha desgastada, mas fiel companheira, “bag” verde da Uber às costas, estaciona, sorri e enxuga a testa com uma toalha de mão. “Acabei de começar”, diz.

É ali, testa suada de percorrer os mais de 7 km entre o Lar do Trabalhador – onde mora – e o centro da cidade, que começa a jornada deste jovem por, aproximadamente, 5h, noite adentro, nas entregas para bares e restaurantes em pedidos feitos por aplicativos de celular. No guidão da bicicleta, Mateus representa a nova face da precarização trabalhista brasileira: jovem, na luta por um emprego, rodando as cidades de bicicleta para ganhar menos de um salário mínimo.

A toalha não pode faltar para tirar o suor do rosto (Foto: Paulo Francis)
A toalha não pode faltar para tirar o suor do rosto (Foto: Paulo Francis)

Entre a crise econômica que assola o Brasil nos últimos anos e patina para sair com leve recuperação, e o desemprego, cresce no país o subemprego, o trabalho temporário e o trabalho informal. A população que trabalha em veículos, como os motoristas de aplicativo e taxistas, aumentou 29,2% em 2018 e chegou a 3,6 milhões, segundo a série histórica da PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

O número representa um acréscimo de 810 mil pessoas em relação a 2017. É a maior alta em termos percentuais e absolutos desde 2012, início da série histórica divulgada pelo IBGE. Em Campo Grande, o aumento foi de 53%. Em 2017, essa parcela de trabalhadores representava 15 mil pessoas e em 2018, o número pulou para 23 mil.

Já aqueles que trabalham em local designado pelo empregador, patrão ou freguês, grupo que inclui os entregadores em geral, também sofreu maior alta desde 2012. São 10,1 milhões de pessoas nessa condição em 2018, alta de 9,9% em relação a 2017. Na Capital de Mato Grosso do Sul, o aumento foi de 13%. Em 2017 eram 60 mil pessoas e em 2018, 68 mil.

Luzes e colorido no cruzamento da Afonso Pena com a 14 ilustrando o caminho de Mateus (Foto: Paulo Francis)
Luzes e colorido no cruzamento da Afonso Pena com a 14 ilustrando o caminho de Mateus (Foto: Paulo Francis)

Bike boys - A jornada diária de Mateus para tirar, em média, R$ 800 por mês, começa às 19h e vai até 00h00. O alívio para a rotina dura vem de um grupo de 13 jovens entregadores, que se associaram, de modo informal, para dividirem o fardo. A solidariedade dos mototaxistas cedeu o ponto onde se encontram todos os dias no mesmo horário e onde ficam no intervalo das entregas. Todos se conheceram nas ruas e decidiram criar o “bike boys” no whatsapp.

A chegada das empresas que oferecem serviços por aplicativo, a exemplo da Uber e Ifood representa desafio em todo o mundo. A dificuldade em legislar e definir o vínculo trabalhista, além de tributar fez, inclusive, com que alguns locais decidissem proibir os serviços e, por outro lado, em locais onde foi possível incidir tributação ou definir regras para a relação entre empresa e trabalhador, as empresas é que decidiram parar de operar.

Procurador do trabalho do MPT-MS (Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso do Sul) em Campo Grande, Paulo Douglas de Moraes tem se dedicado ao estudo dessa nova forma de trabalho. Ao criticar a precarização, relata dois fatores principais para que as empresas surgissem no cenário econômico brasileiro com grande poderio: o aperfeiçoamento do sistema de transmissão de dados e a evolução na capacidade de processamento desses dados. Os dois juntos formaram, diz ele, a “economia de compartilhamento”.

“Essas tecnologias absorvem todo um percentual da receita e não absorvem nenhuma parcela dos riscos e dos custos. Atribuíram a essa figura humana que ainda subsiste os riscos e os custos e se apropriam de uma parte significativa da receita, ficam apenas com a parte do que é bom e deixam tudo para o ser humano que, por enquanto, ainda é necessário. O que a gente vê desde a roda é uma busca desmesurada por acumulação, despreocupada com a socialização dos benefícios revolucionários sob o ponto de vista tecnológico”, explica.

Confira a entrevista com o procurador:

Reféns de aplicativo – Enquanto Mateus descansa e espera a primeira corrida de entrega, quem chega ao ponto de encontro dos bike boys é quem também já desponta como um tipo de “líder” entre eles. A rotina de Vinicius dos Santos, 19 é ainda mais exaustiva, já que ele trabalha durante a noite, e parte da tarde, como entregador e no restante do tempo, como jovem aprendiz.

Ao comentar a falta de regulamentação sobre a atividade, Vinicius escolhe a palavra “refém” para definir a relação que ele e os companheiros têm com as empresas.

Vinicius, a bike e a bag (Foto: Paulo Francis)
Vinicius, a bike e a bag (Foto: Paulo Francis)

“Eu acho que eles têm que proporcionar essa segurança pra gente, só que a gente é refém do aplicativo, na verdade, porque a gente ficou aqui ontem mais de 6h, teve gente que fez duas corridas, então você coloca 6h para duas corridas e gente que vem de bairros a cerca de 15 km daqui”, explica ele.

Vinicius e Mateus moram com as famílias e ajudam no sustento da casa. Enquanto se desdobra em dois trabalhos diferentes, Vinicius já planeja a carreira no Direito e a vocação nessa área pode ser observada na forma como analisa a relação trabalhista.

“Muitos países já recolhem direitos previdenciários e trabalhistas. O Brasil é um pouco retrógrado nessas questões, aí o aplicativo, ele manda, ele entra no Brasil e não se adequa às leis brasileiras, eles fazem o que querem, não tem ninguém pra fiscalizar, você fica refém do aplicativo, o aplicativo manda na cidade e pronto”.

Mateus ainda está no terceiro ano do ensino médio em escola pública e quer estudar engenharia. Ele vive com a mãe, que trabalha em serviços gerais em hospital de Campo Grande, e com a irmã, atendente de telemarketing.

“Não sei dizer [o lugar mais longe para onde já levou uma entrega], mas já fui longe, já fui para bairro afastado daqui do centro. Teve um dia que fui lá perto do Terminal General Osório. Ah, pra nóis [sic] que pedala todo dia assim não é muito [cansativo], acostuma”, opina, e, então ri: [Se tivesse uma moto] ia ser bem melhor”.

Os dois pedalam como entregadores há meses e disseram terem apenas “baixado” o aplicativo no celular e realizado cadastro com dados como identidade e CPF. Em menos de uma semana, contaram, foram aprovados. Nenhum equipamento de segurança é fornecido e a bicicleta, já tinham em casa.

Mateus e Vinicius, prontos para começarem as entregas da noite (Foto: Paulo Francis)
Mateus e Vinicius, prontos para começarem as entregas da noite (Foto: Paulo Francis)
Vai começar a primeira entrega da noite (Foto: Paulo Francis)
Vai começar a primeira entrega da noite (Foto: Paulo Francis)

Estado atropelado – Para o procurador, as empresas “atropelaram” o Estado, que ainda não conseguiu legislar, de forma precisa, sobre o tema. Dessa forma, critica, esses trabalhadores estão totalmente desprotegidos. Para exemplificar o risco e a exposição dos entregadores, cita o caso de um entregador que morreu de exaustão na frente de um condomínio em São Paulo.

“Esse cenário acaba levando e a gente tem percebido isso, não só no motorista por aplicativo, mas também a bicicleta, todos eles numa situação de desproteção absoluta. Com alguns agravantes: uma relação de cunho não trabalhista e da jurisprudência combinada com a relação extremamente predatória sob o ponto de vista comercial, com empresas de aplicativo ficando com a maior parte do lucro e transferindo para esse prestador de serviço todo o risco”, diz ele.

Ele cita o que considera pequeno avanço com a lei federal 13.640 e as novas regras municipais, em Campo Grande, mas afirma que na legislação municipal as sugestões feitas pelo MPT para a regulamentação ficaram de fora. “O que elas trouxeram? Um conjunto de regras para as empresas e para os próprios motoristas, mas, mais uma vez, não há nada para proteger essas pessoas que trabalham”, afirma.

“O MPT teve acento na comissão que discutiu alguns aspectos gerais dessa lei. O prefeito criou e eu achei um debate até bastante democrático, o Ministério Público teve acento, mas as propostas que foram colocadas, infelizmente, não foram acolhidas e não foram não por vontade da Prefeitura. Ironicamente, não foram acolhidas também com apoio dos próprios motoristas de aplicativo e dos taxistas. Como a falta de percepção da realidade leva a tomada de decisões totalmente equivocadas”, relata ele.

Procurador do Trabalho em Campo Grande, Paulo Douglas de Moraes (Foto: Marcos Maluf)
Procurador do Trabalho em Campo Grande, Paulo Douglas de Moraes (Foto: Marcos Maluf)

Crise econômica e desemprego – O que leva esses jovens a optar pelo aplicativo, além da flexibilidade do trabalho, é a falta de emprego. Mateus relata ter “descoberto” a possibilidade pelo youtube depois de enviar vários currículos, sem resposta.

“Dá pra tirar R$ 200, assim, por semana. Às vezes eu vou longe, mas a Uber manda no máximo 3km. Faz tempo [que tinha a bike], um tempão, aí andava de bicicleta de graça, agora eu falei vou ganhar dinheiro né”, conta ele, com bom humor. Falta [oportunidade para os jovens], ainda falta”, opina e afirma que muitos colegas estão optando pela entrega com as bikes.

Quem também faz parte do grupo, mas sonha um dia ser professor de história, é Gabriel Luiz Vaz de França, 19, que ainda tem um longo caminho pela frente: parou de estudar quando estava no sexto ano do ensino fundamental. O motivo? Começou a trabalhar, aos 13 anos, como instalador de tv a cabo.

“Faz tempo que eu parei, não teve tempo, já trabalhava desde os 13 com tv a cabo, eu e mais um. Ele era terceirizado e eu trabalhava pra ele, era bom até trabalhar para eles. Na época pagava R$ 130 por semana e R$ 400 por mês, trabalhava das 8h às 16h. Comecei faz uns nove meses [como entregador] das 13h até às 21h, 22h. Fico por aqui mesmo”, conta o jovem, que sai no início da tarde da casa onde mora com o pai, a mãe e as irmãs na Vila Nogueira. “Meu pai é aposentado e minha mãe é diarista”, relata.

O que consegue ganhar por mês, comenta, varia entre R$ 400 e R$ 600. “Eu estava vendo o EJA [Ensino de Jovens e Adultos], só que tem que dar entrada na documentação, só quando receber mês que vem. Tenho vontade de ser professor de história. Sei lá, acho interessante, diferente”, revela, com timidez.

O Procurador do trabalho afirma que a crise econômica somada aos ajustes fiscais engrossaram ainda mais o caldo do sucesso das empresas. Conforme explica, as pessoas são, em primeiro lugar, consumidoras e ao terem serviços essenciais oferecidos com baixo custo, não deixam de utilizar.

“Eu sei se essa pessoa que vai trabalhar por horas, horas e horas ao longo do dia está com a sua condição cardíaca adequada para esse trabalho que por si só é degradante? Essa pergunta não é respondida e a pessoa já inicia a sua atividade e eventualmente o resultado que a gente acaba assistindo é esse: a pessoa morrendo no pé dos condomínios”, alerta.

No olhar dos meninos – A amizade alivia o cansaço e por mais dura que seja a rotina, é raro ouvir reclamações. No olhar dos meninos, receber para andar de bicicleta é uma vantagem. Os perigos das ruas que ficam escondidas durante as noites que pedalam nem sequer vem à cabeça ao falar sobre o trabalho. Em meio ao relato despreocupado, surge a informação de um pneu furado no meio do caminho. A ajuda está a uma mensagem de whatsapp de distância.

“Eu estava voltando pra casa e meu pneu estava estourado, aí um parceiro estava voltando da entrega, aí fiz amizade”, diz Mateus sobre o dia em que ficou sabendo sobre o grupo e começou, oficialmente, a ser um dos bike boys.

“Ontem fiquei até às 23h40 aqui no centro, mas tem dia que a gente fica até mais tarde, fica até 1h da manhã. É exaustivo, mas dá pra brincar, a gente leva na brincadeira, então isso é bem animador. Além disso, trabalha seu corpo, é uma atividade física”, conta Vinicius.

A dureza da rotina não impede o bom humor (Foto: Paulo Francis)
A dureza da rotina não impede o bom humor (Foto: Paulo Francis)

A dureza das ruas, além das “cenas esquisitas” vistas de vez em quando, se reflete na falta de solidariedade, no copo de água não oferecido nas casas onde entregam fast food, mas às vezes, a surpresa vem na gorjeta.

“Raramente oferecem água, mas elas dão gorjeta, porque não é fácil, é desafiador demais. Tem dias que a gente roda 60 km por dia, dia movimentado, é muita coisa, às vezes nessas subidas, pensa nossa não vou aguentar chegar não, tem uns que até param”, relata.

Resgatar a dignidade humana – O procurador afirma que, no momento, a Procuradoria-geral do Trabalho discute enquadrar essa forma de trabalho nas definições de fraudes trabalhistas. A coordenadoria nacional responsável por essa irregularidade, contou, já tem um estudo em curso. “Até inspirou enfrentamentos judiciais coletivos. E a nossa expectativa é de que esse julgamento firme uma jurisprudência no sentido protetivo”, diz.

Na opinião do procurador, ainda assim, há pouco para comemorar. Com tanto retrocesso, a tentativa de proteção, diz, “é um patamar civilizatório mínimo”.

“Quando você não respeita a dignidade das pessoas esse patamar foi violado”.

O que dizem as empresas – Transparência não é o forte de empresas como a Uber e a Ifood. Em contato com a Uber, pela assessoria de imprensa, a reportagem conseguiu posicionamento enviado por email.

“Para os ciclistas e pedestres é exigido documento que comprove que têm mais de 18 anos. O entregador parceiro que opta por usar o Uber Eats recebe uma taxa fixa por retirada e entrega que varia conforme as regiões da cidade e a distância percorrida. A Uber sempre reforça a todos os usuários, entregadores e motoristas parceiros do aplicativo que o Código de Trânsito Brasileiro deve ser respeitado, incluindo o uso de equipamentos de proteção individual. O Uber Eats ainda oferece gratuitamente ao entregador parceiro um seguro com cobertura de até R$ 100.000,00 em caso de acidentes pessoais que ocorram durante as suas entregas e reembolso de até R$ 15.000,00 em despesas médicas. Outra parceria feita pelo Uber Eats também dá aos parceiros acesso ao Vale Saúde Sempre, cartão pré-pago que dá desconto em atendimentos médicos e exames laboratoriais”, diz a nota.

A Uber não fornece informações sobre o número de motoristas, em carros ou bicicletas, cadastrados na empresa. A reportagem do Campo Grande News também tentou, via site, email e telefone, falar com a Ifood, mas não foi possível localizar a assessoria de imprensa da companhia. Ao ligar em um dos escritórios, em Osasco (SP), foi informada de que ninguém poderia passar email ou telefone da assessoria de imprensa.

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