A Lei de Abuso de Autoridade criou um bicho-papão?
A nova Lei de Abuso de Autoridade já está interferindo, negativamente, no trabalho de juízes, promotores e policiais, mas não era para ser assim.
O fato é que em época de Lava Jato, trazer à tona uma lei que pretende “controlar” a atuação das autoridades públicas é, no jargão popular, dar uma grande bola fora. Mas ela veio mesmo assim, e de tanto rebuliço que deu, mesmo passado um mês da promulgação, ainda não há sinal de que a poeira está baixando. Tal como focos de incêndio na mata seca, começam a aparecer pelo Brasil notícias sobre a aplicação da nova lei antes mesmo de sua entrada em vigor.
Um desses focos veio de Santa Catarina. A notícia veiculada é de que um promotor de Justiça deixou de abrir uma investigação criminal sobre um caso de importunação sexual que lhe foi encaminhado por uma denúncia anônima, na qual se apontava a suposta autoria, mas sem dados concretos sobre a vítima e as circunstâncias do fato.
Diante disso, ele teria arquivado a chamada “notícia-crime” ao fundamento de que o artigo 27 da Lei de Abuso de Autoridade pune o ato de “instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime”.
Mas será que a nova Lei de Abuso de Autoridade realmente criou esse bicho-papão, que amedrontaria até mesmo Promotores de Justiça?
Bom, num tempo em que o modismo é a “polarização” e a “lacração”, o mais difícil é escapar da tentação de defender, desde logo, uma única e “verdadeira” resposta. Superada essa tentação, passemos a refletir.
Pois bem, um lampejo de resposta começa a brotar se perguntarmos o que deveria fazer o mesmo promotor de Justiça, diante do mesmo fato, mas antes da vigência da Lei 13.689/2019. Levando em consideração apenas o que foi noticiado, será que um promotor de Justiça realmente daria início a uma investigação criminal baseado numa denúncia anônima, na qual se acusa “José” (sim, poderia ser você) de ter cometido um crime de importunação sexual contra não se sabe quem, não se sabe como?
Outro lampejo aparece quando se lembra que uma das medidas de investigação é a busca e apreensão domiciliar. Assim, será que, mesmo antes da promulgação da nova lei, um juiz iria deferir o pedido de busca e apreensão na casa de “José” “sem qualquer indício da prática de crime”?
Na verdade, a notícia veiculada na mídia não oferece as informações necessárias para que se possa formar uma opinião fundamentada sobre postura do promotor catarinense. E o mais significativo é justamente o fato de que, apesar dessa carência de informações, há uma nítida tomada de posição contrariamente à Lei de Abuso de Autoridade, como se antes dela o Promotor de Justiça tivesse autorização legal para dar início a uma investigação criminal sem “qualquer indício da prática de crime”.
Apesar disso, ainda que tamanha impropriedade viesse a ocorrer, segundo a nova lei somente haveria crime de abuso de autoridade se o promotor tivesse agido “com a finalidade específica de prejudicar outrem [“José”] ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”. Sim, a exigência dessa “finalidade específica” vem expressa no parágrafo 1º do artigo 1º da Lei 13.869.
Por isso, se o promotor catarinense, ao invés de arquivar a “denúncia anônima”, tivesse dado seguimento à investigação, para que esse ato pudesse ser considerado crime de abuso de autoridade seria preciso provar (ênfase para esse verbo) que ele não agiu motivado pela busca da verdade, mas sim por uma daquelas “finalidades específicas”, e torpes, acima apontadas.
Os doutrinadores de Direito Penal chamam essas “finalidades específicas” de “dolo específico”. Grosso modo, uma pessoa pratica um crime com dolo quando sua ação ou omissão é fruto de sua vontade consciente. Subtrair coisa alheia móvel, por exemplo, é crime de furto, e ele pede que a pessoa tenha consciência de que está pegando algo de valor que não é seu, isto é, que aja com dolo. Já o dolo específico é mais que isso, porque além da vontade consciente, é preciso que a pessoa tenha em mente o desejo de alcançar uma finalidade específica.
É por isso que o Professor Guilherme Nucci, que também é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, e um dos autores de Direito Penal mais consagrados do Brasil, escreveu que a Lei 13.869/2019 “trata-se de uma lei tecnicamente superior à Lei 4.898/65 , sem qualquer vício de inconstitucionalidade; ao contrário, uma autêntica blindagem aos operadores do Direito” .
Portanto, a Lei de Abuso de Autoridade não criou um bicho-papão. Embora tenha vindo num momento inadequado, ela não é destinada a prejudicar nenhum juiz, promotor ou policial que trabalhe honestamente, ou, melhor dizendo, que não atue “com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”.
Podemos todos (principalmente quem for autoridade!) dormir tranquilos.
DAVI NOGUEIRA LOPES
Advogado. Mestre em Direitos Humanos pela UFMS. Especialista em Direito Constitucional pela PUC-SP. Especialista em Ciências Criminais pela UNAMA/LFG. Curriculum Lattes: http://lattes.cnpq.br/5257232538086824.