Martírio é chance de reflexão sobre o povo que luta dentro de um estado genocida
Depois de muitas negociações, o filme "Martírio" estreia no cinema UCI, no Shopping Bosque dos Ipês
São oito etnias no Estado. Temos a segunda maior população indígena do Brasil. O sentimento de orgulho, porém, divide espaço com a tristeza de Mato Grosso do Sul ser o estado com mais casos de violência contra índios no país. A desigualdade de forças envolvidas nos conflitos entre indígenas e proprietários rurais é o que narram as cenas do documentário "Martírio", de Vicent Carelli, exibido de forma gratuita nesta quarta-feira em Campo Grande, no Museu das Culturas Dom Bosco.
De um lado está a população genuinamente brasileira, que antes da colonização já consolidara seu espaço, seus usos e seus costumes no solo sul-mato-grossense, em terras que, por outro lado, hoje fazendeiros ocupam por força de títulos de propriedade cuja validade se discute. Ao longo dos anos, as populações indígenas foram afastadas de seus tekoha - nome dado pelos Guarani-Kaiowá ao lugar a que pertencem - e agora buscam a eles voltar.
Em sala lotada, mais de 150 pessoas esperavam ansiosas pela exibição em Campo Grande, que estava fora do circuito. Foi graças à pressão da campanha para exibir o filme aqui que ele chega às salas do cinema a partir desta quinta-feira.
Antes de começar, o público recebeu com aplausos lideranças que foram protagonistas, como os Guarani-Kaiowá Damiana, Felipe Kunumi, Ramão e Helena.
O som dos maracás e cantos guaranis marcaram a presença de quem tem a vida dedicada a essa luta.
Nas palavras de um dos organizadores, Messias Basques, a presença dos indígenas foi ainda mais importante. "Talvez não haja nenhuma outra luta no Brasil tão resistente quanto a dos indígenas. Afinal de contas, não é uma luta que começou ontem, mas sim há 517 anos", explica.
Messias bem diferencia tolerância de reconhecimento em seu pensar. Não basta que as minorais sejam toleradas, mas, indo além, que sejam reconhecidas, incluídas e respeitadas. "A luta indígena é uma luta que inclui a existência do outro, enquanto o nosso é um discurso de tolerância. Mas tolerar não é acolher. E por isso eu gostaria de dizer que vocês são extremamente bem vindos, sei que não é fácil para quem vive essa luta, mas hoje também é um dia alegre porque vocês vieram aqui prestigiar um filme que vocês são protagonistas e devem ser visto todos".
Com força, fibra, determinação e mais de 70 anos de vida, Damiana é símbolo da resistência Guarani-Kaiowá em Apyca'í, território reivindicado pelos índios na BR-463, em Dourados, e que pertence à fazenda Serrana, terra arrendada para a usina São Fernando, de propriedade de José Carlos Bumlai. Na exibição, a mulher guerreira cita, com imenso vigor na luta pelo seu povo, que não vai desistir nunca. "Apyca'í não é de fazendeiro não. Nessa terra meu pai lutou. Índio tem terra", cita.
Mais de 50 estudantes indígenas estiveram presentes para prestigiar o documentário, entre eles, o Xavante Leosmar Tsuretsu, de 26 anos, acadêmico de Pedagogia que se identificou com a luta de seu povo. "A reflexão é muito interessante, porque a luta é a mesma em qualquer lugar. É assim também de onde eu venho", afirmou.
Com três horas de filme, a história narra o cotidiano de quem sobrevive da esperança em ter suas terras de volta. A cada cena, é impossível não se sentir chocado com a triste realidade enfrentada pelos Guarani-Kaiowá. A grave situação já dura décadas. Ao mesmo tempo, a emoção toma conta ao ver um povo que, mesmo diante da dor e da penúria, luta com ardor e dignidade.
A obra de Vicent faz jus ao título "Martírio". O filme é um convite único para entender os conflitos entre fazendeiros e indígenas, longe da ótica preconceituosa que insiste em tratar os índios como invasores, ladrões e, até mesmo, assassinos.
A mestranda em Antropologia Priscila Anzoategui, que faz parte do Coletivo Terra Vermelha, entidade que apoia a luta indígena desde 2012, também acredita que "Martírio" consegue mostrar a realidade dos conflitos indígenas. "Aqui neste Estado que é um Estado genocida, quando eu soube que ia estrear no Brasil e não aqui, eu fiquei indignada e resolvi pressionar para que fosse exibido. Afinal, o filme todo foi rodado em Mato Grosso do Sul, e consegue passar exatamente o significado da luta", afirmou.
Quando o documentário chegou ao fim, Messias, humildemente, pediu desculpas, além de pedir que os presentes não se esquecessem da luta dos Guarani-Kaoiwá. "Peço desculpas e também a reflexão de que todos tem o direito de ir embora e viver suas vidas normalmente, mas o que não temos o direito é de esquecer quem são os guarani. Esse filme não nos permite o direito da ignorância e do esquecimento", refletiu.
Depois de muitas negociações, o filme "Martírio" estreia no cinema UCI, no Shopping Bosque dos Ipês, trazendo reflexões sobre a realidade dos que dedicam a vida por seu tekoha. O filme será exibido de 11 a 18 de maio.
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