A galera bebe cerveja com Sadan, sem imaginar a real história do Hassan
Guerra e saudade de casa marcam a vida do homem que leva fama de “grosso” em conveniência da Av. Três Barras
Há anos, o buchicho entre os clientes de uma das conveniências mais conhecidas da cidade gira em torno do dono. De poucos sorrisos, ele carrega a fama de ser grosseiro entre as turmas que passam pelo local para comprar uma bebida ou carvão para o churrasco.
O empresário Hassan Afif Hamieh é sempre muito sério. Sentado no caixa, registra o valor, recebe o dinheiro e devolve o troco sem muita conversa. Uma conveniência cheia de gente bebendo, ao contrário do que outros estabelecimentos buscam, para ele é um tormento. “Não gosto de bagunça na minha porta; prefiro manter a ordem e apenas vender”, justifica.
Mas, ao conversar com o empresário, a impressão é de que as aparências enganam. Hassan fala baixo, parece calmo, pelo menos durante a entrevista, e ainda mantém um sotaque árabe carregado. Porém, se o estresse bate à porta, ele admite: “Quando me deixam nervoso, o árabe aparece com força; mal dá para entender direito o meu português”, ri.
O sorriso de poucos segundos surpreende. Hassan não parece tão rude quanto pintam por aí ou quando se tem a experiência rápida de comprar na conveniência. Sua “fama”, ele já conhece de longe e ainda faz um gesto com a cabeça indicando que não se importa. “Acham que eu sou bravo, né? Mas é que todo mundo entra aqui e não conversa comigo. Talvez eu também não dê muita conversa, mas, como eu disse, não gosto de aglomeração aqui na porta”.
Nascido no Líbano, Hassan tem 53 anos e diz que fundou a Sadan Festas em 1990. Diferente de muitos libaneses, ele não chegou aqui para tentar uma nova vida. Carregava nas costas, segundo ele, o título de “traidor” por um dia ter se oposto a matar, em guerra, pessoas do mesmo grupo, que também eram xiitas. “Eu era de um partido, o Amal, que naquele tempo lutava na guerra. Quando o governo da Síria invadiu o Líbano, por volta de 1982, eles queriam ver xiita matando xiita, porque surgiu um novo partido, o Hezbollah”, explica Hassan, referindo-se ao grupo que fez os xiitas ganharem força durante a guerra civil no Líbano e mudou o mapa político da região.
Hassan então saiu do Líbano, viajou até a França e depois desembarcou no Paraguai. “Foi quando eu conheci Campo Grande”, explica. Aqui, conheceu um amor e passou a viver do comércio, deixando para trás a guerra e a família.
Mas sua relação com os conflitos não parou por aí. Hassan nunca esqueceu a guerra que viveu e, anos depois, voltou ao Líbano, onde visitou xiitas, o partido e teve contato com armamentos pesados que resultaram em fotografias que ele não esconde caso alguém pergunte. “Pouca gente sabe da minha história, mas eu não tenho vergonha de falar, é o passado da minha vida. Vai mudar se eu esconder? Não vai. Então, eu falo com tranquilidade”.
Hassan foi atirador de elite no Líbano, durante o período de guerra. Embora estivesse armado e fardado, ele diz que não matava civis nem crianças. “Atirava em todo mundo que estava armado. Mas nunca em civis desarmados e muito menos em crianças. Essas pessoas não tinham nada a ver com isso. Mas era o cenário de guerra”.
Nem todo mundo gosta de ouvir essa história, diz Hassan. Por isso, fala pouco do assunto, mas não se arrepende do passado que, como toda guerra, envolve mortes. “Já me perguntaram isso, mas não me arrependo de nada. Era a guerra e eu estava em uma missão”.
Questionado sobre o que o levou, ainda adolescente, a entrar para esse cenário, o empresário lista os motivos. “Lá a gente não tem outra saída, muitas vezes, porque sai cedo de casa e não tem onde trabalhar. Em outros momentos, pessoas querem entrar porque um puxa o outro. Eu gostava muito”.
Pelo celular, ele mostra uma de suas últimas visitas. O contato com armamentos pesados, com força para derrubar helicópteros e destruir tanques, é visível pela tela do aparelho. Hassan assume o gosto pelos objetos, mas, paradoxalmente, fala sobre a defesa do desarmamento no Brasil. “Brasileiro não tem maturidade para usar arma e nem para a liberação. Aqui, as pessoas gostam de mostrar arma na rua; nem policial deveria fazer isso. Arma é pra ficar guardada, escondida, e não para uma pessoa se exibir”, comenta.
Em seguida, lembra da guerra, da qual ele ainda não consegue ver um fim no horizonte, e traz lembranças dolorosas da família. “Perdi dois irmãos na guerra. Nessa foto em que apareço no tanque, fiz uma homenagem a eles”, diz mostrando o celular.
Apesar de mais de 30 anos vivendo no Brasil, ele não nega a saudade de casa. “O principal na minha vida ficou lá, que é a minha família. Se hoje você me perguntar se sou completamente feliz aqui, eu digo que não sou, sinto muita falta deles”.
O sorriso aparece novamente ao mostrar uma foto da mãe, que, depois de anos distante, conseguiu visitar Hassan no Brasil. “Foi um momento muito importante para a gente”.
Após algum tempo de conversa com o Lado B, ali mesmo, no balcão da conveniência, Hassan parece um homem simpático e, gentilmente, vai até os fundos da conveniência buscar a farda que trouxe do Líbano. “Essa é a que eu guardo com carinho. Aqui está o símbolo do partido, ó”, aponta para a escrita amarela do lado direito da farda.
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