De 338 comentários, quase nada se salva no caso do padre que engravidou coroinha
“Abuso coisa nenhuma! A mulherada é safada mesmo!”. Olha ai uma das “observações” sobre o caso do padre que engravidou uma adolescente de 16 anos em Campo Grande. Coisa chata, parece notícia velha. O discurso não muda.
A sentença partiu de uma das centenas de pessoas que resolveram compartilhar na fanpage do Campo Grande News toda a “sabedoria” de Facebook, nesta animada tarde de terça-feira, cheia de escândalos e ameaças de prisões de políticos e fechamento da Câmara de Vereadores por falta de gente honesta. Não que o assunto seja sem importância. Tem valor, e muito. Por isso merece responsabilidade.
Defender o padre e acabar com a menina já nem é de surpreender nesta sociedade machista que não cansa de se manifestar. Isso é o mais grave. A gente já fica esperando os sexistas. Tudo bem alguns equivocados, mas quase nada uqe mereça a leitura? Tem gente que acha uma comédia. Para mim, perdeu a graça faz horas. E como todo mundo pode dar opinião, também vou dar a minha.
Nesse caso, o time do religioso é composto quase que exclusivamente por mulheres, que defendem o homem sem o menor pudor de apunhalar a grávida.
“Abusada por 9 meses...? Conversa para boi dormir..!!! Que os pais façam o casamento porque a moça é bem sabidinha”, comenta uma.
Sem saber nada sobre a história dessa garota, o que parece diante dos comentários postados é que as pessoas já criaram uma caricatura de pornochanchada.
No imaginário delas deve surgir uma adolescente de seios fartos, boca carnuda, cabelos longos e pele de Gabriela, que customiza a túnica de coroinha para chegar sensualizando na missa e aparecer bem apetitosa ao padre depois da celebração.
“Vão a igreja com pouca roupa”, “Não generalizo, mas tem muita moça que dá em cima dos padres”, são outras das justificativas para o ato impulsivo do dito cujo, o que já dura 9 meses.
Na continuação dessa cena de roteiro coletivo, a edição corta para o padre suando, tremendo, mas firme na missão de conduzir os fiéis a Deus. Até que, na sacristia, a “safadinha” dá uma encoxada e fisga o homem que, já fora de si, se entrega à volúpia. Depois, reza bastante, se martiriza, mas entende que não pode expor a história para não abalar a comunidade.
É...o povo adora a imagem de uma família tradicional, organizada em torno da figura do homem, mesmo que o cara use batina e a organização em questão seja uma igreja. A moça de saia sempre será a culpada.
“A menina pode até ser de menor, mas já tem ideia do que é certo ou errado, e sabe muito bem o que é um padre para uma igreja”, comenta um dos sabichões.
Tem até mãe avacalhando as próprias filhas no Facebook só para não passar por desinformada e mostrar que "é de opinião". “Que abuso, meninas de 16 já sabem o que é certo e errado. Tenho três filhas e com treze anos elas já falavam que eu não mandava mais. Todas casadas. A de 15 nem o pai segura. Já foi morar com o pai do filho dela, foi escolha delas cada um sabe o que faz”.
Dos 338 comentários postados na nossa página até às 16h30 é difícil encontrar algo que preste nesta discussão que virou fofoca, nada além disso.
Todos resolveram apontar “culpados”, crucificar. Não há debate sobre o exercício do poder, do respeito, da ética. Poucos citam a hipocrisia, por exemplo. E nesse placar, a garota perde de lavada. Na verdade, não tem um cristão para defender a moça, com fé.
Parece que o mundo não tem denunciado ao longo dos séculos os abusos cometidos dentro da igreja, que não existe uma relação de poder no meio desta história que faz do sacerdote um rei.
Sem contexto, saltam argumentos do tipo: “O padre não tem culpa!! Ela namorava!!” e “Antes dele ser padre ele é um ser humano propício a cometer erros...Não acho que ele violentou. Uma jovem de 16 sabe exatamente o que estava fazendo..outra coisa, ele é um padre, não santo”.
Traduzindo, o bom padre pode pecar e merece ser perdoado, mas a menina não. O bom padre se apaixona, a menina só quer sacanagem. Padre pode constituir família. Gay não.
Os dois são apenas personagens já apresentados por Nelson Rodrigues em algum texto, com outros nomes e históricos, em literatura que não serviu para comover Zé ninguém. O próprio escritor sabia disso e dizia: "O ser humano só se salvará se, ao passar a mão no rosto, reconhecer a própria hediondez".
O problema é a necessidade de colocar o dedo no nariz de alguém e assim ganhar algum status. Tomar partido publicamente, elegendo um como bandido e outro como mocinho. Propagar raiva, reforçar preconceitos, abusar da baixaria pode, "pegar" o padre não.
Depois, acontece de novo, e não vai faltar gente horrorizada com mais um escândalo na Igreja. Ué, mas o coitado do padre não é humano? A menina não é uma louca ninfomaníaca? O negócio não é derrubar "a presidenta" e esquecer tudo de podre que está acontecendo em Campo Grande e os rombos abertos em Mato Grosso do Sul por mafiosos? (Mudei de assunto, não é? Mudei nada!)
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